Da
Amizade
“A natureza parece muito interessada em implantar em
nós a necessidade das relações de amizade” (M. Montaigne, Da amizade, Essais I, 28), com essa afirmação de Montaigne busco
escolher o melhor lugar e a melhor maneira de expressar esse meu sentimento e
essa minha necessidade de amar, de ser amado e de construir conhecimentos que
possam ir além da superficialidade e da formalidade; no seu ensaio Montaigne
expressa a sua lealdade e o seu respeito por La Boétie, o seu amigo e modelo de
vida virtuosa, do qual ele nunca mais se separou a partir do momento que se
conheceram e nem a morte prematura desse fez o nosso filósofo esquecer ou
diminuir o seu afeto e aproximação com o amigo.
Montaigne afirma ainda que é “a correspondência dos
gostos que engendra as verdadeiras e perfeitas amizades” (Idem), por isso, em uma relação formal: pais e filhos, trabalho e
outras agregações de parentela ou ofício não se verifique esse saborear a
própria ligação ou afeição porque não
necessariamente exista uma correspondência das vontades e do ideais, mesmo
porque essa seja uma necessidade de condição e não uma escolha da amizade por
si mesma. Amor de obediência, de respeito e de honra não é o mesmo que amor de
amizade, ou seja, onde haja uma união e uma compenetração dos espíritos que
muitas vezes parecer ser uma única pessoa.
A amizade é procurada e não simplesmente uma
consequência de escolhas e de vínculos, o que significa que na amizade os
envolvidos se conhecem, se respeitam, se entregam e sobretudo se amam, não por
qualquer qualidade, mas “ele era ele e eu sou eu”, como declara Montaigne; os
amigos caminham unidos e um é causa da alegria e do crescimento existencial do
outro, porque na amizade não há apropriação ou exclusivismos, mas as “vontades
intimamente fundidas” contribuem para o desenvolvimento sadio e proporcional da
identidade do amigo. A amizade não é possessão ou domínio, mas liberalidade de
afeto e de vida que mesmo na exigência da presença do amigo não fecha a porta
para os outros.
Quando La Boétie faleceu, Montaigne se entristeceu e
se retirou de todos os prazeres e desejos vitais, mas depois compreendeu que a
amizade não se destruía com a morte, mas que a ausência física do amigo o fazia
descobrir que dando continuidade ao seu projeto e vivendo em sintonia com a sua
perspectiva, a sua presença era presente e o seu exemplo era o estímulo para
que ele não paralisasse, mas que colocaria em prática o que realmente essa o
essencial da existência, isto é, o movimento. A amizade cheia de convicção e de
virtude que estimulou Montaigne a escrever e a se tornar um dos maiores
escritores do Renascimento, baseava-se na simplicidade e na sinceridade da
relação amistosa e na franqueza de manifestar o seu mundo vivido como expressão
de seu pensamento, mas acima de tudo se uma experiência dinâmica de si mesmo e
do mundo que o circundava.
Lendo as páginas de Montaigne e não somente o Da amizade, percebe-se um entrelaçar
profundo e espontâneo da reflexão filosófica com a cotidianidade do senhor de
Montaigne, sem sofrer a divisão operada por muitos estudiosos, entre o mundo
vivido, consumado e material e o mundo pensado, idealizado e aconselhado; certo
que ele era muito consciente e suas páginas revelam, da descontinuidade e da
reticência operante do interior de cada ser humano e por isso mesmo, ele não
hesitava mostrar as suas fraquezas e defeitos para poder superar essa natural
ambiguidade da condição humana.
A nomenclatura realista e altamente simples da
escritura de Montaigne não somente revelam o seu caráter e a sua visão do mundo
e da filosofia como projeto e não como sistema, mas revelam sobretudo que o
homem é aquilo que vive e que ama e não o que se define; assim sendo, amar
significa desnudar-se em espirito perante o outro para poder viver a amizade
não como estratégia e sim como condição mesma de ser e viver. Na amizade o
outro não é o obstáculo que se deve superar ou um acordo para não sofrer as
consequências da solidão e do abandono, mas o encontro de desejos, vidas e
objetivos que tem como propósito oferecer e receber amizade, pois se existe
qualquer outro interesse fora da amizade mesma, a relação se destina a se
transformar em um comércio de afinidades e afetos e depois se arruína e esfria,
dado que perde a sua natural espontaneidade.
Ser amigo é deixar-se guiar pelos sonhos do outro,
porque sabe que esse te conduz pela estrada da felicidade; quando se vive a
amizade com abertura e como virtude de quem encontra a joia de existir, a
esperança se torna o motor de cada gesto e a serenidade o modo de enfrentar e
de se aproximar de cada evento e de cada pessoa. As pessoas que não
experimentam a amizade ou confundem essa com interesses, geralmente são
amargas, pessimistas e duplas na convivência e na construção dos próprios
afetos. A escolha da amizade se dá não pelas posses ou talentos, mas pela
vontade de trilhar juntos o mesmo caminho e de propor-se em jogo na busca
incerta mas divina da realização e da satisfação pessoal. Essa sede infinita de
presença e de reconhecimento do próprio eu no eu do outro é o que distingue uma
amizade e que une sempre e de todos os modos aqueles que se amam.
Olhando a mim mesmo e a minha descontinuidade, que não
significa ser inconcludente ou sugestionável, mas simplesmente que reajo
diversamente a estímulos semelhantes, não tenho um comportamento retilíneo e
standard, mas vivo a atmosfera do momento, porque não me vejo enquadrado em
nenhum rótulo e ainda menos em atitudes fixas e determinadas, posso ser
extrovertido em um momento e altamente tímido no outro, anjo e demônio, como já
se dizia os padres da igreja, justo e pecador ao mesmo tempo, e não retenho
isso um mal, apenas o resultado de uma natureza que de por si mesma é suspensa
entre a satisfação instintiva dos animais e o desejo profundo de eternidade dos
espíritos, para parafrasear Pascal; sinto-me assim, capaz de gestos grandiosos
de doação e desprendimento, mas também de atitudes mesquinhas e egoístas
(segundo a escala de valores vigente) e não vejo que seja um pecado ou uma
abominação, mas apenas vicissitudes diferentes.
O homem é capaz de amar, de perdoar, de renunciar, mas
também de matar, roubar e de se vingar, e dependendo de como vive esses traços
posso aceita-los como natural, ainda que não se convenha realizar tudo que seja
natural ou não proibido; mas o homem é capaz de algo que nem as bestas e nem os
anjos são capazes, ou seja, de uma amizade profundo, como desapego total de si
e entrelaçamento de vontades, ou seja, até Deus sou amou com amor de amizade
quando se fez homem, antes amava com coração de Deus, capaz de salvar ou de
outros gestos grandes, mas não de compenetrar na miséria e na grandeza do
sentimento humano. Eu quando ao uma pessoa me perco na minha entrega e por isso
mesmo sofro quando a outra pessoa não entende a amizade como a entendo e a
busco.
Nenhum comentário:
Postar um comentário