Olhos

Olhos



Os olhos
Janelas para o mundo ou para a vida?
Distintivo de sentimentos
Expressão íntima de eternidade
Abertura de horizontes longínquos
Brilho que revela amor
Disfarce que denota confusão

Olhos que dilucidam, olhos que condenam,
 Olhos que apreciam, olhos que desnudam
Olhos que vigiam, olhos que acolhem
Olhos que mitigam, olhos que contemplam!

Os olhos,
Denúncia de frieza e indiferença
Espectro de buscas e amarguras
Vivacidade que requer mudanças
Perfume de outras constelações
Resumos de luzes e cegueiras
Imagem cortante de inspirações!

Jorge Ribeiro

Novembro 2015

Da amizade

Da Amizade


Jorge Ribeiro
jorgeribeiroribeiro@gmail.com


“A natureza parece muito interessada em implantar em nós a necessidade das relações de amizade” (M. Montaigne, Da amizade, Essais I, 28), com essa afirmação de Montaigne busco escolher o melhor lugar e a melhor maneira de expressar esse meu sentimento e essa minha necessidade de amar, de ser amado e de construir conhecimentos que possam ir além da superficialidade e da formalidade; no seu ensaio Montaigne expressa a sua lealdade e o seu respeito por La Boétie, o seu amigo e modelo de vida virtuosa, do qual ele nunca mais se separou a partir do momento que se conheceram e nem a morte prematura desse fez o nosso filósofo esquecer ou diminuir o seu afeto e aproximação com o amigo.
Montaigne afirma ainda que é “a correspondência dos gostos que engendra as verdadeiras e perfeitas amizades” (Idem), por isso, em uma relação formal: pais e filhos, trabalho e outras agregações de parentela ou ofício não se verifique esse saborear a própria ligação ou  afeição porque não necessariamente exista uma correspondência das vontades e do ideais, mesmo porque essa seja uma necessidade de condição e não uma escolha da amizade por si mesma. Amor de obediência, de respeito e de honra não é o mesmo que amor de amizade, ou seja, onde haja uma união e uma compenetração dos espíritos que muitas vezes parecer ser uma única pessoa.
A amizade é procurada e não simplesmente uma consequência de escolhas e de vínculos, o que significa que na amizade os envolvidos se conhecem, se respeitam, se entregam e sobretudo se amam, não por qualquer qualidade, mas “ele era ele e eu sou eu”, como declara Montaigne; os amigos caminham unidos e um é causa da alegria e do crescimento existencial do outro, porque na amizade não há apropriação ou exclusivismos, mas as “vontades intimamente fundidas” contribuem para o desenvolvimento sadio e proporcional da identidade do amigo. A amizade não é possessão ou domínio, mas liberalidade de afeto e de vida que mesmo na exigência da presença do amigo não fecha a porta para os outros.
Quando La Boétie faleceu, Montaigne se entristeceu e se retirou de todos os prazeres e desejos vitais, mas depois compreendeu que a amizade não se destruía com a morte, mas que a ausência física do amigo o fazia descobrir que dando continuidade ao seu projeto e vivendo em sintonia com a sua perspectiva, a sua presença era presente e o seu exemplo era o estímulo para que ele não paralisasse, mas que colocaria em prática o que realmente essa o essencial da existência, isto é, o movimento. A amizade cheia de convicção e de virtude que estimulou Montaigne a escrever e a se tornar um dos maiores escritores do Renascimento, baseava-se na simplicidade e na sinceridade da relação amistosa e na franqueza de manifestar o seu mundo vivido como expressão de seu pensamento, mas acima de tudo se uma experiência dinâmica de si mesmo e do mundo que o circundava.
Lendo as páginas de Montaigne e não somente o Da amizade, percebe-se um entrelaçar profundo e espontâneo da reflexão filosófica com a cotidianidade do senhor de Montaigne, sem sofrer a divisão operada por muitos estudiosos, entre o mundo vivido, consumado e material e o mundo pensado, idealizado e aconselhado; certo que ele era muito consciente e suas páginas revelam, da descontinuidade e da reticência operante do interior de cada ser humano e por isso mesmo, ele não hesitava mostrar as suas fraquezas e defeitos para poder superar essa natural ambiguidade da condição humana.
A nomenclatura realista e altamente simples da escritura de Montaigne não somente revelam o seu caráter e a sua visão do mundo e da filosofia como projeto e não como sistema, mas revelam sobretudo que o homem é aquilo que vive e que ama e não o que se define; assim sendo, amar significa desnudar-se em espirito perante o outro para poder viver a amizade não como estratégia e sim como condição mesma de ser e viver. Na amizade o outro não é o obstáculo que se deve superar ou um acordo para não sofrer as consequências da solidão e do abandono, mas o encontro de desejos, vidas e objetivos que tem como propósito oferecer e receber amizade, pois se existe qualquer outro interesse fora da amizade mesma, a relação se destina a se transformar em um comércio de afinidades e afetos e depois se arruína e esfria, dado que perde a sua natural espontaneidade.
Ser amigo é deixar-se guiar pelos sonhos do outro, porque sabe que esse te conduz pela estrada da felicidade; quando se vive a amizade com abertura e como virtude de quem encontra a joia de existir, a esperança se torna o motor de cada gesto e a serenidade o modo de enfrentar e de se aproximar de cada evento e de cada pessoa. As pessoas que não experimentam a amizade ou confundem essa com interesses, geralmente são amargas, pessimistas e duplas na convivência e na construção dos próprios afetos. A escolha da amizade se dá não pelas posses ou talentos, mas pela vontade de trilhar juntos o mesmo caminho e de propor-se em jogo na busca incerta mas divina da realização e da satisfação pessoal. Essa sede infinita de presença e de reconhecimento do próprio eu no eu do outro é o que distingue uma amizade e que une sempre e de todos os modos aqueles que se amam.
Olhando a mim mesmo e a minha descontinuidade, que não significa ser inconcludente ou sugestionável, mas simplesmente que reajo diversamente a estímulos semelhantes, não tenho um comportamento retilíneo e standard, mas vivo a atmosfera do momento, porque não me vejo enquadrado em nenhum rótulo e ainda menos em atitudes fixas e determinadas, posso ser extrovertido em um momento e altamente tímido no outro, anjo e demônio, como já se dizia os padres da igreja, justo e pecador ao mesmo tempo, e não retenho isso um mal, apenas o resultado de uma natureza que de por si mesma é suspensa entre a satisfação instintiva dos animais e o desejo profundo de eternidade dos espíritos, para parafrasear Pascal; sinto-me assim, capaz de gestos grandiosos de doação e desprendimento, mas também de atitudes mesquinhas e egoístas (segundo a escala de valores vigente) e não vejo que seja um pecado ou uma abominação, mas apenas vicissitudes diferentes.
O homem é capaz de amar, de perdoar, de renunciar, mas também de matar, roubar e de se vingar, e dependendo de como vive esses traços posso aceita-los como natural, ainda que não se convenha realizar tudo que seja natural ou não proibido; mas o homem é capaz de algo que nem as bestas e nem os anjos são capazes, ou seja, de uma amizade profundo, como desapego total de si e entrelaçamento de vontades, ou seja, até Deus sou amou com amor de amizade quando se fez homem, antes amava com coração de Deus, capaz de salvar ou de outros gestos grandes, mas não de compenetrar na miséria e na grandeza do sentimento humano. Eu quando ao uma pessoa me perco na minha entrega e por isso mesmo sofro quando a outra pessoa não entende a amizade como a entendo e a busco.


Michel de Montaigne: As razões da Intolerância



Michel de Montaigne: As razões da Intolerância



Por Jorge Ribeiro de Sousa[1]


Esse trabalho é extrato da tese intitulada: Michel de Montaigne: por uma filosofia da Tolerância, Roma 2013.  A tese versa sobre o binômio paixão e pensamento como busca efetiva da tolerância e do diálogo imprescindível para a construção de uma sociedade pacífica e que as pessoas sejam incluídas e vista na sua totalidade.  Em Montaigne se encontra inoculado e expresso os meios para uma filosofia da conversação, ou seja, capaz de dialogar com os homens de todos os tempos e de inseri-los em um encontro de respeito e de colaboração.  A parte que segue é tirado do quarto e último capítulo da tese citada, quando se busca encontrar os meios da filosofia da tolerância de Montaigne.




1.             A intolerância e suas razões

         Montaigne se desconcerta ao constatar certa força de intolerância muito maior que aquela da tolerância e da paz e se pergunta: «por que entre tantos argumentos por outros aceitos, não achamos um do nosso gosto que nos persuada igualmente?»[2] Isso significa que antes de se obstinar pelas próprias idéias e convicções, uma pessoa que busca agir de maneira flexível e dialogal e ele abraça a universalidade pois tem presente que as suas idéias são suas somente até certo ponto: pois são frutos de suas leituras, de seus contatos e de suas experiências, não são inatas no sentido que esporadicamente brotaram de si mesma sem ter conexões com idéias já expressadas ou vividas; isso significa que tudo o que alguém é e pensa não são genuinamente seu: ou se herda ou se aprende[3].
         Independente de uma concepção peremptoriamente gnosiológica, aqui se quer acentuar o caráter antropológico da pessoa, que na sua vertente científica pode oferecer razões à intolerância[4] por meio da arrogância, confusão ou soberba intelectual[5], mas ao contrário, o que brota da natureza leva a justificar que a tolerância e a humildade seriam a estrada correta, porque essa natureza é frágil, ambígua e contingente[6].
         O que leva alguém a se enveredar pelo caminho da intolerância, se a sua mesma natureza precisa ser tolerada continuamente? É esse um dado que a natureza humana é descontínua e que muitas vezes quer voltar aos princípios ou modos de antes? Constata-se que a mesma estrutura humana não é linear, muitas vezes estranha a si mesma, o que seria mais prudente e coerente conceber a própria existência como realidade a se construir, capaz de corresponder melhor a essa realidade movediça e cíclica e não se enrijecer perante o diverso e o diferente[7]. E aqui surge outra pergunta: alguém que se torna intolerante, incapaz de reconhecer os valores do «outro» e ainda forja razões para tal intolerância, pode-se dizer que seja alguém que leva a sério a sua existência e tem consciência do dinamismo interno que essa comporta?
         E pode ainda formular outras perguntas: Não se perde o sentido da vida quando a natureza é violada? Parece elucidar que a obstinação em manter um regime, a pretensão de possuir uma verdade e a banalidade em querer levar vantagem em tudo possa conduzir a formas de intolerância. Neste apartado quer se analisar algumas faces da intolerância, tais como o absolutismo, o dogmatismo, o sistematicismo, o indiferentismo e a banalidade; e também aprofundar as razões que levam uma pessoa, um grupo e um estado agirem com tais princípios. Aqui não se quer oferecer reflexões morais, mas apenas delinear e indicar algumas situações que por sua intolerância provocam violência, marginalização, subtração e destruição e indicar pistas que se não seria mais vantajoso e civilizado agir com tolerância do que com a intolerância[8].

1.1.       O absolutismo político

         Os interesses e as vantagens, tanto no tempo de Montaigne[9] como no hodierno, é uma marca negativa que tende a marcar o mundo da política; primeiro porque muito se tem perdido o sentido da busca pelo bem comum ou do estado como lugar da realização social do indivíduo; segundo porque tem se privilegiado a proteção e a conquista de benefícios pessoais ou daquelas pessoas que fazem parte do «partido» e também porque a política tem se transformado mais em uma profissão a exercer que um serviço a se prestar em prol das melhorias cabíveis para o desenvolvimento dos cidadãos e do estado como estrutura onde esses encontram a proteção e a tutela de si e dos seus bens.
         Um estado que não salvaguarda os seus cidadãos, com sua «diversidade de costumes»[10] e uma política que não visa o progresso integral desses mesmos cidadãos tende a se transformar em um sistema absoluto de condução do povo.
         O estado deve dialogar[11] com seus «súditos», tanto na elaboração e na execução das leis, por meio dos representantes do povo, como também deve escutar esse povo quando ocorre mudar sistema de convivência e de valores. Ninguém há o direito de impor a sua vontade[12] e os seus valores a ninguém, nem mesmo um estado, salvo que esse seja totalitário e absoluto, o que foge ao desenho de uma sociedade democrática, aberta, como se enfatiza neste estudo, porque se retém que somente um governo e um estado democráticos podem conduzir ao bem comum de maneira tolerante e pacífica.
         A essa altura se coloca outra pergunta: A que ponto, no mundo da política, tolerar seja respeitar devidamente? Como fomentar o acolhimento intrínseco à tolerância quando a própria lei não ajuda? Buscar-se-á oferecer pistas a essas questões ao longo deste apartado.
         De uma parte se percebe o que já denotava Montaigne, ou seja, que «a conservação dos estados é coisa que provavelmente ultrapassa a nossa inteligência, dado que um governo é uma força difícil de dissolver»[13], o que significa uma «vocação» para ser homem de governo, administrador dos bens comum; e da outra parte, há a inconveniência dos meios usados pelo estado: contratos, acordos, emendas, o que denota como se a corrupção fosse o interesse público[14], essa coisa pode levar ao absolutismo, ao totalitarismo, à negação da liberdade[15], da tolerância e do diálogo, porque um governo que não pensa aos seus cidadãos de maneira igualitária geralmente o seu modo de agir é com injustiça e com tirania[16], ou seja, de domínio e de coerção.
         Para agir corretamente na sociedade, um deve se misturar nos cargos públicos, empenhar-se em prol dos concidadãos, sem se afastar de si mesmo e do próprio compito, assim com da lei moral[17], a qual deve ser espelhada àquela da natureza, pois essa é sempre justa, coerente e tende ao melhor para todos[18]. A natureza é democrática, tolerante, não condena e não tiraniza sobre os seus componentes, assim deve ser o estado, que deixando cada um crescer e fazer a sua parte estimula o progresso e a tolerância. Mas quando se torna obstinado e absoluto, o estado fere a lei da convivência tolerante e passa a usar um regime de tirania, o pior de todas as formas estatais[19].
         Pode-se ler em Montaigne que o absolutismo[20] é o isolamento e a tendência ao absoluto seja um fechamento em defesa de qualquer atitude que ponha em risco a integridade do próprio estado[21], pois as ações públicas são sujeitas às incertezas e diversas interpretações[22], mas também porque no absolutismo o homem vale somente enquanto instrumento da engrenagem governativa e não como outro homem, dada a exagerada estima de si, a corrupção e a presunção dos quem dirigem um governo absolutista[23], não assim como propõe a democracia, onde o homem vale por si mesmo[24].
         Em todo caso é claro que longe de ser um sustentador da idéia de progresso, Montaigne adota a mitologia renascimental da idade do ouro[25], onde a filosofia e a política se exprimem como instrumentos de liberação e de tolerância do indivíduo[26] e não de um liberalismo que se tende à anarquia, pois ele era convicto que: «observar as leis do país em que nos encontramos é a primeira das regras, é uma lei que prima sobre as demais»[27]. Em outro vertente Montaigne se manifesta contra o autoritarismo que o absolutismo acarreta, entendendo o autoritarismo como o exercício da autoridade de modo exagerado e arbitrário, o que significa que se constitui numa opressão aos subordinados[28].
         Montaigne era meio tendencioso por um governo monárquico[29], mas que fosse enxertado pela liberdade, pelo devir e pela democracia no modo de governar[30]; pensava ele um estado construído sobre as bases da amizade e da honestidade, um viver em associação ao qual se poderia reformular a política, fazendo essa retornar aos direitos da origem, de natureza[31].
         Prospecta aqui quanto se é convicto que tolerância política e democracia estão estreitamente ligadas[32] e que as razões para a construção de uma sociedade sem o uso da força e do domínio dão-se onde a liberdade pessoal e comunitária é defendida e os direitos respeitados, tantos os privados como os de cidadania[33] e não como advêm num sistema absoluto onde são suprimias as liberdades constitucionais quando se obtêm o poder[34].
         O absolutismo, pelo seu método, que muito é de força, de domínio e de constrangimento leva facilmente à violência e à guerra, a pior de todas as pragas[35] e porque a lealdade ao partido político absoluto e à sua ideologia é demasiado rígida e gerou grande intolerância, no passado e continua gerando no presente. Isso se pode ver onde se experimenta o sistema do partido único, como afirma um estudioso contemporâneo[36], mas também em sistemas democráticos que o presidente ou primeiro-ministro dita as regras e coage o parlamento a aprovar as leis de seu interesse.
         O absolutismo impulsiona a intolerância[37], primeiro porque se constitui um governo que não se leva em conta as outras possibilidades, segundo porque em tal maneira de conduzir as pessoas são transformadas em estatística, depois porque o chefe desse tipo de governo é visivelmente emprenhado pelo vício inimigo da democracia e da tolerância, que é a presunção e ainda porque causa grande «instabilidade»[38] na sociedade e não se verifica uma política necessária para o crescimento comum[39]. Essa situação que denunciava Montaigne é de uma vivacidade e de uma atualidade desconcertante, pois os meios continuam iguais, basta ler o que ele escreveu a respeito do governo de seu tempo afirmando que: «a força, a violência invadem tudo»[40], e observar os meios usados pelos governos totalitários, de estampa mais ou menos moderna e disfarçada de democracia.

1.2.       O dogmatismo religioso

         Outro fator preponderante para que se impere a tolerância, do ponto de vista montaigneano, é o dogmatismo religioso[41], ou seja, o centralismo administrativo e absolutismo da Igreja, onde o comando do Pontífice e de todo o Estado eclesiástico se dava ou se dá com suprema autoridade e com mero e absoluto império, dependendo o tudo somente da vontade do Papa[42]. De inicio se dá certa ambigüidade e a Igreja preza mais pelo lado espiritual, mas pouco a pouco o Papa se aproxima da figura de um monarca estatal.
         Pode-se verificar já que «com Sixto V emerge uma visão típica de soberano absoluto, teso ao autoritarismo e a uma acentuada intervenção nos afazeres em todos os níveis e o seu esforço edilício por Roma capital»[43]. Dá-se então o ímpeto de reforçar as estruturas fixas e estáveis que caracterizam os estados modernos. Política que foi seguida pelos sucessores: Clemente VIII que constitui a «Congregação do Bom Governo» (De Bono regimini) em 1592; Eugênio IV, o qual reivindicará com tenacidade o privilegium fori para a Santa Sé em confronto aos Estados.
         Desta postura de centralização administrativa se passa a uma atitude de consolidação da doutrina oficial, até se chegar ao dogmatismo[44]. A perda da hegemonia territorial e da autoridade institucional, especialmente com a Reforma[45], depois com a Revolução Francesa e o Liberalismo, provoca uma onda de temor ao interno da Igreja, que se desemboca numa possível «re-catolização» com a Contra-Reforma, os Concílios (especialmente o de Trento e o I do Vaticano).
         De início se desenha um conflito de interesses interno entre princípios doutrinários, depois o pavor a fatores externos como a «União Protestante», à qual se aderem muitos países, Príncipes e reinos, com interesses territoriais, coisa que provoca a conhecida «guerra dos Trinta anos» (1618 – 1648), banhada de sangue e impropérios, uma imensa carnificina até se chegar à paz européia de Westfália (1648), quando se fez o acordo entre a religião e os Príncipes, sendo esse «o último conflito europeu em que se jogam motivos religiosos»[46].
         Essas desavenças territoriais e religiosas, seja da idade moderna ou de outras épocas, como também da atual tende a levar a uma busca pelo fortalecimento da própria identidade, pela conservação do patrimônio material e religioso e uma exclusão do que pode provocar ou ameaçar a integridade do que se retém inalienável. Assim, muitas vezes se opta pelo exclusivismo, pela condenação, pela excomunhão e pela perseguição[47] como forma de retaliação e de imputação a quem não se adéqua ao «sistema» codificado. Essa perspectiva de confissão religiosa se deságua em dogmatismo, isto é, em afirmação peremptória da verdade de fé e dos dogmas atrelados a um Credo religioso. Quando se chega a tal ponto, faz-se necessário um «edito»[48] ou um acordo para que se possa contemplar o que seria um dever da religião, a tolerância com os que têm outra confissão ou possuem maneira diversa de viver a fé.
         Joga fortemente nessa luta pela pureza e uniformidade da crença a ambigüidade humana, a variação[49], pois na maioria dos casos outros interesses invadem o que seria apenas o desejo de manter a integridade e a ortodoxia da fé, sem a busca de uma ajuda moral[50] para o bem-estar dos adeptos, coisa que Montaigne experimentou na própria carne, quando o seu livro foi condenado[51], manifestando assim o seu desaponto e apelando maior tolerância.
         O dogmatismo, como qualquer outro sistema totalitário, acarreta consigo domínio, força, ameaça e intolerância. A obstinação[52] em manter certo princípio religioso leva à exclusão, ao indiferentismo e até à violência. Tendo isso em vista que Montaigne condenava a presunção de quem afirmando a própria fé entrava em contradição com essa, ou seja, negando a liberdade e a livre aderência das pessoas. Essa realidade ele expressa muito nos seus escritos, especialmente no capítulo da Apologia de Raimond Sebond[53] e no Da Oração[54], onde ele aponta as contradições de uma religião violenta, soberba e mundana.
         Para Montaigne, segundo um estudioso do seu pensamento[55], o que diferenciaria o cético do dogmático seria a postura diante do estatuto provisório de suas opiniões, onde o caráter «impremeditado e fortuito» das fantasias que caracterizam a atividade argumentativa cética oferece certo relativismo às idéias e a realidade, pois o cético age sempre a partir da afirmação da própria «liberdade» e não de uma verdade estabelecida.
         Na questão religiosa[56] Montaigne apelava para o valor da consciência religiosa, ou melhor, da regula fidei, sendo assim, neste «âmbito é reconciliável a contraposição erasmiana entre a loucura cristã e a soberba dos teólogos»[57] e que Montaigne aplica na sua Apologia[58], especialmente quando declara que a presunção é nossa doença natural e original[59], pois a doença humana consiste próprio na opinião que se tem do seu conhecimento[60].
         Percebe-se que na posição dogmatista se dá uma identificação da verdade com a autoridade do dogma[61], ou seja, Montaigne insinua de alguma maneira que «a intolerância é filha do dogmatismo»[62] e que por isso mesmo o dogmatismo seja danoso para a pessoa, dado que essa adesão sem reservas aos princípios doutrinários do sistema não aceita discussão do que se é afirmado e não se dialoga com o que é alegado[63], o que infere uma aceitação por coerção e não pelo uso voluntário da liberdade.
         Essa prevalência do «dado» como norma normativa gera insatisfação, medo e receio, e, de conseqüência, uma intolerância de ambos os lados, quer dizer, intolerância de quem dita o dogma, pois não aceita confronto ou interpretação variada da verdade afirmada e que se caminhe por uma estrada heterodoxa, por isso mesmo castiga que anda por fora;  e intolerância[64] de quem sofre o dogmatismo, pois se sentindo sufocado e oprimido pelo centralismo, pela presunção e pela falta de interação, reage com violência, rigidez, fechamento e dissidência.
         No dogmatismo, como nas outras possíveis acepções da intolerância, há uma presunção de posse da verdade[65], há uma incompreensão a quem se azara «correr por fora», pois o dogmático é fechado na sua posição, ambiciona que todos estejam dentro do seu sistema e quer impor o seu integrismo como uma possibilidade de «salvação»[66]. Montaigne é um crente, um fideísta, mas vive a religião ao seu modo, meio naturalista e meio cético, ainda que use a dúvida metódica para defender a «religião do rei»[67] e justificar certas atitudes abusivas, especialmente do catolicismo de sua época.
         A sua crítica ao modo mundano dos ministros eclesiásticos de então e a maneira arrogante que esses apresentavam a religião não afastou Montaigne da sua crença cristã, mas ele a adornou com outros modos de viver a fé, como dos indígenas ameríndios[68] e dos chineses[69]. Pode-se resumir esse ponto dizendo que o mundo daria um grande passo à frente, se todas as religiões conseguissem elevar sua vocação espiritual, isto é, favorecendo a qualidade da existência e o nível de vida de todos aqueles que partilham de sua fé; certo é que as autoridades religiosa[70] deveriam empenhar-se para eliminar os germes da intolerância de seus milhares de adeptos.
         Não há necessidade de impor a própria convicção religiosa[71], o particular ponto de vista[72], mas deve ter sempre presente que «a liberdade de converter-se e a liberdade de converter os outros são duas coisas diferentes»[73]. Isso significa que cada um deveria ser livre para exercer a liberdade de pensamento, de costumes[74], de consciência e de religião nas melhores condições possíveis e sem constrições.

1.3.       O sistematicismo intelectual

         Para Montaigne a ignorância à própria capacidade de conhecimento e ao próprio julgamento é o passo essencial para a sabedoria[75], uma vontade de permitir que as coisas caminhem de acordo com a sua ação comum, sem algum sistematicismo[76]. O sistematicismo intelectual, segundo ele, é fruto de uma razão intolerante[77], que olha para dentro de si mesma e é complacente de sua própria capacidade e não se interessa de entender as coisas como são realmente. A razão deve olhar para fora de si mesma e contribuir para uma maior aproximação à natureza, mestra de bom senso, senão se torna tutora e meio de inúmeros crimes e constrangimentos. A razão não é absoluta e muito menos proprietária da verdade, ela deve apenas investigar e contribuir na sua persecução.
         A Montaigne[78], a razão quando gira em torno de si mesma e não fomenta uma relação comunicativa do sujeito com o objeto se desemboca numa ambigüidade, a qual se pode denominar indadequation[79], isto é, a razão humana é caracterizada pela fraqueza, pela mentira[80] e pela impureza[81], o que provoca um parcelamento no mesmo sujeito e não lhe permite experimentar a riqueza da diversidade.
A razão precisa ser dialogal, assistemática para poder capturar a essência da natureza do homem, que é mortal[82] e frágil[83]. A atitude coerente da razão dessa natureza volúvel e débil é a ignorância, o diálogo e a dúvida[84]. Assim, ao invés de pretensiosamente afirmar, negar e sistematizar uma coisa, a razão deve se colocar em atitude de questionamento e se perguntar: «que say-je»[85]? Quer dizer, a razão deve oferecer espaço para que a verdade se revele e se mostre e não aprisioná-la em declarações e em sentenças de pura elaboração mental.
         Uma ciência ou uma razão que se caracteriza pela sistematização e não prioriza a fluidez[86] que caracteriza a natureza humana tende a se desaguar numa perversa vontade de domínio e de inversão da representação da verdade, dado que o que sustenta a mesma ciência e a sua certeza é a própria fragilidade humana e não a irrefutabilidade de seus argumentos[87]. Somente a arrogância, a vaidade e a presunção[88] podem levar que a razão humana tenha a pretensão de rotular a verdade por meio de sistemas, sem levar em consideração o outro[89] com suas riquezas e sua necessidades; demasiada identidade acaba por se transformar em barbarismo[90] e esse excluir e se fechar em si mesma da razão se versam numa atitude de intolerância a outras possibilidades de conhecimento e de investigação.
         Cabe se perguntar sobre os rumos da educação[91] e quais métodos essa usa para fomentar uma razão capaz de dialogar e de acompanhar o processo de cada estudante, sem a violência, sem a coerção e sem uma tendência totalitária. Será que a educação possui de instrumentos adequados para formar o sujeito na sua inteireza ou apenas se satisfaz em transmitir conhecimentos livrescos[92]?A instrução ou educação deve formar o homem para a vida, a ser melhor, mais sábio, sem a loucura da auto-suficiência dos livros[93].
         Montaigne alerta que se deve formar o homem, por inteiro, e não somente a sua cabeça[94], a sabedoria humana não sabe nada, apenas opina sobre o presente[95], pois a verdade está sempre escapando das mãos do homem, ele a persegue e não a possui, sendo assim, quando esse tende aprisioná-la em sistemas essa se torna intolerante, abusiva e dominadora[96]. Neste sentido, até mesmo a confissão da ignorância, serve de estímulo, porque mostra que cada um deve buscar seu caminho[97] e não reduzir a própria existência em um mero apêndice, pois a experiência traduz a existência do homem, com suas fraquezas e grandezas[98], mas o «livro reduz a vida a um comento»[99].
         O livro não deve substituir a coisa, a vida deve ser vivida, fluidamente e não se a engaiolar em um sistema[100]. Isso é possível porque o método montaigneano rejeita certos artifícios intelectuais para manejar a sabedoria como aproximação estreita ao sentido comum e à natureza[101]. É o enlaço de vida vivida e vida refletida que ajuda o homem a encontrar a sua harmonia, pois essa é a via da sabedoria, que tende a conduzir o homem com solidez e com integralidade[102].
         Um conhecimento que se envereda unicamente pela construção de «silogismos»[103] e sistemas acaba por provocar uma divisão no homem: elevando o aspecto intelectual em degradação do aspecto corporal e dos sentimentos, o que levaria a rigidez, fechamento e intolerância. E por isso ele pode afirmar que o seu trabalho e sua arte não seja o discurso vazio, abstrato, mas ele mesmo[104], pois sua estrada se dá por meio de um percurso que é feito de «senso, experiência e o costume»[105], pois o importante é a instrução que «ensina a morrer bem e a viver bem»[106], não aquela que somente incha a cabeça e exclui que não entra no seu esquema.

1.4.       O indiferentismo antropológico

         Um argumento que não pode se passar despercebido, de uma atualidade incredível e que Montaigne já acionava quando percebia o tipo de relacionamento entre as pessoas de diversas raças, faz eco na reflexão que se empreende neste trabalho, isto é, a questão do relativismo antropológico[107]; muito se tem debatido o relativismo intelectual ou moral, mas numa perspectiva estreitamente antropológica não se contempla tanto.
         De um lado os dogmáticos, absolutistas e sistematicistas usam o indiferentismo de uma maneira «civilizada» ou sem violência para afastar ou excluir os que não entram nos seus esquemas; de outra parte tem os «radicais» opositores de qualquer espécie de instituição e sistema que preferem ignorar ou serem indiferentes aos que se propõem como uma casta ou classe superior; mas no âmbito comum há também um indiferentismo generalizado aos que não se enquadram no desenho «normal» da sociedade ou da comunidade.
         Para Montaigne[108] e sua época esse indiferentismo se traduzia na descriminação dos «europeus» aos outros povos, como não se podia dizimá-los, muitos hão preferido ignorá-los, sendo indiferentes a esse «novo mundo», a esses «novos povos» e à realidade dessas pessoas; em determinado tempo da história se traduziu essa realidade entre os «católicos» e os «protestantes».
         Hodiernamente esse indiferentismo se codifica ainda com «povos diversos», ou seja, os estrangeiros, mas também com o diferente em geral: com culturas, com grupos ou classes; esse não se importar com o «outro enquanto outro», que não busca respeitar sua especificidade, tem provocado a disseminação de muita violência, quer dizer, quando se nota essa presença que costumeiramente não se faz caso, tenta-se de erradicar, menosprezar e até aniquilar, usando muitas vezes de violência ou métodos rústicos[109].
         A tolerância é uma exigência para uma convivência[110] sem uma discriminatória hierarquia, quer dizer, que cada qual vale pelo que é, pelo fato se ser homem[111], não pelos cargos que se ocupa, pela cor da pele que se tem, pela nação a que pertence ou pela condição sexual ou social; assim sendo, o papel da filosofia, como ciência da vida[112], é de formar o homem em grau de construir o mundo externo, de conquistar a própria liberdade[113], sem ser indiferente ao bem que o outro pode oferecer e sem a doentia pretensão de ser o melhor.
         Montaigne insiste que «a vida é o melhor espelho do raciocínio»[114], portanto, para se ter uma convivência sem prejuízos e sadia é possível somente por meio de uma relação de tolerância, pois a tolerância é uma expressão de confiança e de aceitação em relação ao outro, é «uma disciplina interna»[115], como que uma exigência para superar o hiato de medo e de arrogância que se pode estabelecer no encontro com o outro e isso sem ignorar ou menosprezar essa «diverso» que se avizinha.
         Nas relações interpessoais ou sociais, o indiferentismo muito se delineia como uma incapacidade de reconhecimento, como certo desinteresse a uma «vida pré-categorial da percepção»[116], o que pode ser definido como invisibilidade.  A categoria da invisibilidade[117] é muito comum, especialmente nos grandes centros urbanos e nos grandes negócios; a essa categoria se usufrui os benefícios que pode oferecer, mas não a reconhece, sente-se a falta somente quando o «serviço» não é realizado satisfatoriamente.
         Geralmente é uma «categoria» que causa incômodo e desconforto, por isso mesmo a sociedade e os indivíduos fingem não perceber, trata-a simplesmente como invisível; é, entretanto, uma categoria necessária, que se utiliza sempre e sem a qual a sociedade entra em colapso, mas que prefere não notar[118]. É essa uma expressão terrificante e criminosa do individualismo exagerado, uma maneira «passiva» de atualização da intolerância.
         O descontrole em referência ao outro e à sua incidência seria outro efeito do indiferentismo; descontrole que em tantos casos se traduz em violência, seja essa verbal, física ou moral. Parece lógico que se aplique o seguinte raciocínio: o caminho da tolerância levaria ao acolhimento, da diversidade do outro[119], enquanto aquele da descriminação ou intolerância levaria ao indiferentismo ou descontrole, que por sua vez pode se manifestar em atitude de violência, em severidade e em coerção, como já assinalava Montaigne ao perceber que muitos educadores eram indiferentes aos estudantes e aplicavam o próprio método sem levar esses em consideração[120].
         Isso é possível porque ao centro da reflexão de Montaigne tem a história do eu que, ligando autobiografia e filosofia, da vida à autobiografia filosófica do sujeito que o vincula com o mundo, um eu malsão, com o outro e com o mundo[121], ou seja, o princípio da fundamental da sabedoria é a arte de viver feliz. O homem em relação ao outro homem deveria ter sempre a consciência da própria condição, não se fazer nem superior e nem superior, mas por meio do princípio de igualdade buscar uma harmoniosa interação e comunhão com os semelhantes[122]; em Montaigne a consciência livre não é uma consciência solitária, ao contrário, essa se opõe ao mundo e habita o mundo.
         Mas Montaigne[123] nos convida a estar atentos, pois o indivíduo somente entra em possesso de si mesmo na forma reflexiva de sua relação com os outros, com todos os outros, ou seja, o homem «necessita que seja amigo, cidadão para pertencer enfim a si mesmo, no seu movimento e na sua palavra livre que, na página do «registro» aberto por ócio, toma forma de ato»[124].  É a partir da consciência clara[125] da própria condição de miserabilidade e de necessidade que o homem deve viver a abertura ao outro e não se colocar como seu proprietário ou superior, o que portaria ao indiferentismo ou intolerância.
         Montaigne parece afirmar que não se pode «estar na igreja com o pensamento na procissão» como diz um ditado popular, ou seja, ser carente de presença e do outro[126] e ao mesmo tempo ignorar ou querer suplantar essa certeza, isso significa que uma filosofia abstracionista, sistematicista e dogmática não tem como percorrer esse caminho, mas a que ele propõe sim, porque é interação com a vida, com a cotidianidade, com a necessidade prática de cada sujeito, sem se deixar aprisionar pela vaidade e pela presunção do conhecimento[127].
         A consideração do outro é o vínculo que permite Montaigne[128] traçar uma antropologia com fortes linhas de tolerância e de diálogo, onde o reconhecimento dos próprios defeitos e da inerente incapacidade de fazer, conhecer e justificar tudo se retrata em conversação e em aceitação do diverso. Somente o indivíduo inchado de si mesmo e das suas possíveis atribuições, coloca-se como parâmetro e modelo, como possuidor da certeza, por isso mesmo deixa que a sua obstinação ou loucura destrate ou atue de modo indiferente ao outro; o fato mesmo de não aceitar o «diverso» cria uma atmosfera de desconfiança, de guerra fria, mas sempre com conteúdo de intolerabilidade e de rejeição.
         Nesta perspectiva pode por fim se afirmar que Montaigne insinua que a consideração do outro, da sua visão e da virtude que esse carrega consigo contribui para que haja justiça, tranqüilidade, e, assim, tolerância, na convivência social[129]. Aqui ele antecipa não somente a filosofia do século XX[130] que reconhece no outro o campo de diálogo e de reflexão, mas também coloca os pilares do que se vem afirmar a «Organização das Nações Unidas e dos Direitos Humanos» sobre a pessoa, como de tantas associações e instituições hodiernas sensíveis à causa do outro e da defesa da igualdade e paridade entre os cidadãos, como se a diversidade entre os sujeitos mudasse o núcleo categorial do homem.
         A batalha pela tolerância ativa ou positiva é atual e será possível uma convivência interativa quando, como já declarava Montaigne, a educação seja participativa e na liberdade[131] e que os homens não se sintam uns melhores que outros e que saibam reconhecer a própria fragilidade.


1.5.       A banalidade sócio-cultural

         A sociedade moderna é uma sociedade eclética, multirracial, multicultural e, sobretudo, multifacetada e deformada[132], isto é, bastante dividida, agnóstica, especializada e relativista, onde o «aparecer» e o «ter» parecem se constituir a meta e o valor; isso leva o comum a ser banal, não levar as coisas a sério, pouco se pôr perguntas sobre o porquê da vida e do seu senso[133], dado que se impera um triunfo do haver vantagem sobre tudo e a todos.
         Essa barbárie sócio-cultural é traduzida em ausência de critérios e de parâmetros para a condução da civilização, ou seja, a confusão ou errada compreensão da tolerância pode levar a uma maneira superficial de viver, desrespeitando a diversidade de julgamento[134], onde se banaliza tudo, dando o mesmo peso a todas as coisas e a todas as ações, e, ao extremo, justifica-se e se aprova tanto a guerra, como o roubo, a corrupção ou a dedicação de quem busca fazer o bem em prol dos mais necessitados[135].
         Do ponto de vista intelectual isso se transforma em um ceticismo do vale-tudo, onde o meu ponto de vista é o que vale e a verdade se fundamenta unicamente na minha necessidade, uma espécie de mercado das ideias, oferece-se tudo e tudo há o mesmo espaço e cada qual acolhe o mais lhe convém. Essa ambigüidade do comportamento humano levado a atitude pública gera a lei do salve-se quem puder[136], a intolerância, onde a afirmação de si é fruto da rebelião contra a razão dogmática e ilusória que prometia salvar o homem e da insegurança pela perda do homem do seu lugar dentro da própria sociedade livre que ele construiu[137]. Para Montaigne essa futilidade de viver a vida é espelhada na maneira que alguns se dedicam a meditar sobre a morte, pois ela é parte inerente da estrada do ser vivo[138], e não percebendo a inutilidade de preparar para uma morte pomposa[139], quando a vida é passada sem nenhum significado[140].
         Cabem então as perguntas: Que significado tem uma vida que se caracteriza pela banalidade? Que sentido tem uma vida destinada a se dissolver no nada? Que relação existe entre viver para a morte e aprender a morrer? Ao refletir sobre essas questões os indivíduos podem tirar lições do passado para melhorar sua conduta futura, mas sem se tornar prisioneiros das experiências alheias, pois tanto se faz necessário esquecer certos acontecimentos para poder dar início às relações humanas e cultivar a abertura tolerante em direção ao desconhecido, ao diverso[141]. Assim, pensar a morte, ainda que essa só chegue ao último dia[142], adquire um sentido de constante discernimento e aprofundamento para viverem bem todos os dias.
         A banalidade sócio-cultural si dá tanto porque não se sabe viver e muito menos morrer[143], onde se desaprende a servir, a ser livre, a exercitar a própria liberdade voluntária[144], onde os «canibais» são superiores a muitos filósofos[145] e onde não se percebe que «a vida terrestre não passa de uma espécie de morte»[146]. Dessa maneira, manifesta-se claramente que Montaigne retém, como também aqui nessa dissertação, que a banalização da vida seja fruto de ausência de significado ou perda do gosto de viver, devido às decepções e às desvantagens sofridas ou porque se tem impostado erradamente a experiência da intersubjetividade; do momento que o real seja instituído como relação e se perceba melhor que a exterioridade pertence às coisas e à alteridade, de conseqüência se pode anunciar a experiência positiva da intersubjetividade[147] e da superação da futilidade existência.
         A banalidade na qual se possa está imersa a sociedade e a cultura de qualquer tempo é sempre fruto da desconfiança do homem[148] a si mesmo e a dúvida de poder encontrar um sentido ao que se é e ao que se faz. Não vendo uma razão para o próprio caminhar o homem se envereda pelo trilho da banalidade, ora de deixando guiar por futilidades, ora por pessimismos e ora pelo vale-tudo.
         Perde-se o valor de cada ação e da própria existência, joga-se continuamente e como fruto se pode cair na vulgarização de tudo[149] ou na intolerância para com insista uma ter uma lógica ou um por quê.  Vendo que tudo é destinado a se acabar com a morte, como tudo que já se viveu[150], o homem perde a esperança em si mesmo, em um futuro melhor e em uma possível redenção da sociedade, então se descamba por tortuosas e escuras veredas, mesmo porque não se tem nada a perder.
          Pode essa ser a justificativa, certamente em negativo, de atos de violência, de espetáculos contínuos de vulgarização e de atitudes de banalização do «outro», em uma palavra, a perda da meta leva à intolerância, a qual se pode manifestar de várias maneiras[151]. Certamente a banalização seja proveniente duma impostação rígida que não se tem em conta, como afirmava Montaigne, que «todos os movimentos são desconhecidos»[152] e que por isso mesmo a exige uma mudança de mentalidade e de método para acompanhar o movimento que a vida, a sociedade e a cultura fazem constantemente.
         Isso vem a indicar que a banalização seja fruto de uma mentalidade que não se adapta  as exigências do dinamismo da existência humana e do «vinculo natural que se realiza na comunidade»[153], preferindo a exclusão e a banalização da intolerância ao diálogo e ao acolhimento da tolerância, mesmo porque na alma humana, também aos grandes da história[154], estão presentes as qualidades e os defeitos, os nobres e os vis sentimentos. 
         Essa banalidade antropológica se fundamenta pela perda de significado da vida, muito mais que da visão que se tem do homem e do seu papel no mundo, pois Montaigne rebate que ainda que Demócrito pensasse que fosse vã e ridícula a condição humana e que Heráclito tinha compaixão da humana condição e que ele mesmo pensasse que a condição humana seja recheada de vaidade, de maldade, de misérias (de nature depravée)[155], isso não significa ser intolerante com o «outro» ou banalizar a sua presença, mas instrumento para encontrar nesse «outro» a ajuda necessária, a companhia para tornar a vida mais saborosa e com maior utilidade.
         As razões da intolerância, portanto, não é simplesmente comportamental ou política, mas é muito mais profunda, é «de ordem filosófica: de ordem nocional, isto é, absolutismo, dogmatismo»[156]; assim sendo, é preciso uma educação coerente que leve as pessoas a perceberem quanto os contatos que se dão por meio de uma tolerância seja muito mais produtivo e que a intolerância provoca mais gastos, violências e mortes[157].
         O homem não tem nada a ganhar quando se envereda pela via intolerante, pois essa lhe faz cumprir um êxodo inverso, ou seja, não saindo ao encontro do outro e experimentando a liberalidade da interação com esse, o homem percorre um caminho de reclusão dentro de si mesmo e de seus esquemas, e assim se torna escravo de suas próprias fantasias e da ausência de presença do «diverso» que pode proporcionar a expansão da sua imagem[158].


2.      Conclusão


Esse percurso leva a perceber o quanto  o autor se esmera para encontrar razões superiores para a tolerância do que para a intolerância,  de modo que esse extrato mostra que a intolerância é fruto de ideologias que se absolutiza, seja ela de qualquer cunho.  A intolerância, assim como a violência,  é resultado do egoísmo exacerbado, quando se busca olhar mais os próprios interesses que o bem comum.  A tolerância, conclui-se a partir de todo o estudo, aparece como atitude, mas é sobretudo como modo de viver e ser, ou seja, a tolerância não acontece por atos externos ou por decretos, ela deve ser incutida como educação positiva. O tolerar não é apenas suportar o diferente, o outro como ameaça e assim busco neutraliza-lo, mas deve ser um modo de ver o mundo, isto é, a tolerância deve ser o rasgo da personalidade de quem quer construir uma vida e uma sociedade imbuída de paz e de diálogo e não de guerras e suspeitas.  O princípio que leva à intolerância é a busca de exclusividade e de proteção de si, ao passo que a tolerância se configura como valor e convivência. O itinerário que leva à intolerância é o medo da perda da própria hegemonia e do que o outro pode fazer comigo e com o que tenho e sou. O caminho da tolerância é o respeito pela igualdade e o reconhecimento da mesma dignidade ao outro que se está diante de mim. 
A bibliografia desse trabalho está na tese, ainda que se possa perceber ao longo das notas que foram usadas bibliografias  originais do próprio Montaigne, como de seus comentadores e estudiosos do tema da tolerância e da personalidade de Montaigne. Vou colocar aqui no final apenas algumas referências para uma imediata consulta a quem se interessar.

3. Bibliografia: Obras e instrumentos de análise de Michel de Montaigne

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Essais. Simon Millanges, Bordeaux 1580
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Essais avec des notes de tous le commentateurs. Firmin-Didot, Paris 1879. Oxford University Press, Oxford, 2007.
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Journal de voyage (Édition de Fausta Garavini).Gallimard, Paris 1983.
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Viaggio in Italia. BUR, Milano 2008.
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Lettere. Le Monnier Università, Firenze - Mondadori, Milano 2010.
L’esperienza. Bompiani, Milano 2006.
Della Saggezza. Rubbettino, Catanzaro 2006.
Dizionario della saggezza (a cura di Roberto Bonchio). Newton Editori, Roma 2012.
Des Cannibales. Folioplus – Gallimard, Paris 2008.
La torre del filosofo. BUR, Milano 1994.
Sull'amicizia. La vita felice, Milano 2007.
Breviario. Rusconi, Milano 1997.
Il benessere fisico e spirituale. Oscar Mondadori Editore, Milano 2006.
Della vanità. Filema, Napoli 2006.
Notes sur les “Ephémérides” de Beuther, in O. C., Gallimard, Paris 1962, 1401-1415.





[1]  Jorge Ribeiro de Sousa, formado em filosofia e teologia, no Brasil e na Italia. Atualmente professor de Metafisica na Faculdade Catolica de Feira de Santana. Sacerdote Catolico, exercendo o ministério em Feira de Santana, e nascido em Santanopolis – Bahia, em 1972. Escreve no site: www.recantodasletras.com.br\pejotaribeiro e tem o blog: www.pjribeiro.blogspot.com.br .
[2]    Que le goust des biens et des maux dépend em bonne partie de l’opinion que nous em avons. Essais I, 14. O. C., 50.
[3]    Comme nous pleurons et rions d'une mesme chose. Essais I, 38, O. C., 230. Onde ele afirma categoricamente: «Nenhum adjetivo nos é aplicável sem restrinção».
[4]    Apologie de Raimond Sebond. Essais II, 12. O. C., 440.
[5]    C. Neutzling, C., Tolerância e democracia, 72.
[6]    Id., 291.
[7]    De l'affection des peres aux enfans. Essais II, 8. O.  C., 366: «Se alguma lei natural existe, isto é, algum instinto que se manifeste sempre em todos, bichos e gente (embora haja quem diga o contrário), é, a meu ver, a da afeição que quem engedra dedica ao engedrado».
[8]    E. Garin, Rinascite, 345. Principalmente quando assinala em relação a atitude de Montaigne que: «Não menos eficaz a valorização das grandes civilizações americanas, ou a exaltação da cidade de Cuzco ou México. De novo a grandeza de Montaigne esta na capacidade de se propor o tema da pluralidade das culturas, independente de qualquer “altivez” européia».
[9]    De l’inequalité qui est entre nous. Essais I, 42. O. C., 254. Onde ele diz que: «a covardia, a indecisão, a ambição, o despeito, a inveja perturbam o potentado como qualquer outro homem».
[10]   P. Leschemelle,  Montaigne: le badin de la force, 103.
[11]   De l’experience. Essais III, 13. O. C., 1044.
[12]   A. Comte-Sponville,  Petit traité, 331.
[13]   De la Vanité. Essais III, 9. O. C., 937.
[14]   Id., 933.
[15]   T. de S.  Birchal, O EU nos Ensaios, 110.
[16]   De la Vanité. Essais III, 9. O. C., 935.
[17]   De mesnager sa volonté. Essais III, 10. O. C., 997.
[18]   N. Panichi,  Il vincolo del disinganno, 129 . Onde afirma o filósofo italiano a respeito de Montaigne que: O agir simplesmente custa pouco ao espírito que age mesmo dormindo. Necessita lhe dar corda com medida. A atitude mais sabia é de misturar-se nos cargos públicos, empenhar-se na sociedade, sem se afastar de si mesmo, do próprio dever, da própria lei moral, do honesto; as leis da natureza ensinam aquilo que exatamente ocorre».
[19]   Id., 175. A esse respeito diz que: «A tirania é ainda mais que outras formas estatais, supondo que outras possam ser imaginadas».
[20]   Apologie de Raimond Sebond. Essais II, 12. O. C., 502.
[21]   C. Neutzling, Tolerância e democracia, 75.
[22]   De mesnager sa volonté. Essais III, 10. O. C., 998.
[23]   De la coustume et de ne changer aisément una loy recevu. Essais I, 23. O. C., 119.
[24]     P.F. D’arcais; G. Vattimo, M. Onfray. Atei o Credenti? Fazi Editore, Roma 2007, 96. «A democracia implica que um homem vale outro homem, que se consultem esses homens, que se faça uma soma e que esta consulta determine uma maioria com a qual se decida a linha política».
[25]   De la coustume et de ne changer aisément una loy recevu. Essais I, 23. O. C., 122.
[26]   R. Ragghianti,  Introduzione a Montaigne, 72.
[27]   De la coustume et de ne changer aisément una loy recevu. Essais I, 23. O. C., 116.
[28]   C. Neutzling,  Tolerância e democracia,  83.
[29]   Des prognostications. Essais I, 11. O. C., 45. Du pedantisme. Essais I, 25. O. C., 143. De la presumption. Essais II, 17. O. C., 631; 639.
[30]     R. Ragghianti, Introduzione a Montaigne, 96. Esse afirma que: «Na época do iluminismo Rousseau e Montaigne «são politicamente da mesma parte, aquela do devir», na idade da Restauração serão «em campos diversos, Montaigne demonstrando-se mais facilmente “recuperável” duma burguesia que se tornava conservadora».
[31]   N.Panichi, I vincoli del disinganno, 176.
[32]   C. Neutzling, Tolerância e democracia, 52. «A questão da tolerância política leva à questão da democracia, compreendida como modo de vida e organização política, expressa sua capacidade de tolerância pelo fato de não ignorar a existência de problemas no convívio social e de reconhecer abertamente a necessidades de investigá-los».
[33]   Id., 50.
[34]     S. Mendes Da Silva,  Teoria da Justiça como equidade de J. Rawls. Editora Papers, Rio de Janeiro 2006, 9.
[35]    De la Vanité. Essais III, 9. O. C., 948.
[36]   V.B.J. Chelikani, Reflexões sobre a tolerância. Editora Garamond Ltda, Rio de Janeiro 1999, 43.
[37]   De la liberté de conscience. Essais II, 19. O. C., 651.
[38]   De la Presumption. Essais II, 17. O. C., 631.
[39]   A. Comte-Sponville,  Petit traité, 11.
[40]   De la Presumption. Essais II, 17. O. C., 630.
[41]   Apologie de Raimond Sebond. Essais II, 12. O. C., 446.
[42]   L. Mezzadri, (a cura de), Storia della Chiesa.  Vol. XVIII \ 2: La Chiesa nell’età dell’assolutismo confessionale: Dal Concilio di Trento alla pace di Westfalia (1563 – 1648). Paoline, Milano 1988.
[43]   Id., 161.
[44]   Que nostre desir s’accroit par la malaisance. Essais II, 15. O. C., 600.
[45]   N. Panichi, Montaigne, 123.
[46]   L. Mezzadri,  Storia della Chiesa,  202.
[47]   Montaigne faz referência à sua própria obra que estava sendo condenada: De mesnager sa volonté. Essais III, 10. Les Essais (1595), 1058; a qual foi censurada por Roma: De la presumption. Essais II, 17. Les Essais (1595), 700. Les Essais foi colocado no Índex em janeiro de 1676.
[48]   Edito de tolerância assinado em 13 de abril de 1598 por Henrique IV, reconhecendo a liberdade de culto aos protestantes (Huguenotes). De mesnager sa volonté. Essais III, 10. O. C., 990.
[49]   T. de S. Birchal,  O EU nos Ensaios, 178.
[50]   A. Comte-Sponville,  Petit traité, 93.
[51]   De mesnager sa volonté. Essais III, 10, O. C., 990. Esclarece Montaigne: «Essais III, 10:  Tampouco  admiro que um magistrado possa condenar um livro tão somente porque nele se menciona um herético como o melhor poeta do século. (...). Desejariam que quando se verificam acontecimentos nefastos, cada qual, segundo o seu partido, se torasse cego e imbecil e os visse não como são, mas como querem que sejam. Eu pecaria antes por exagero oposto, receoso sempre de que meus desejos nao lhe influenciem. Demais, desconfio um pouco das coisas que ambiciono». Montaigne faz aqui alusão à Inquisição que ao seu livro (de acordo com De la Presumption, Essais II, 17, O. C., 645), porque ele elogiou entre outros, a Teodoro de Bèze (1519-1605), que escreveu versos latinos Juvenilia, tidos como osbcenos e se converteu ao Calvinismo, assim Montaigne foi reclamado por Roma porque citou un poeta calvinista. Cfr. O.C., 1595, n. 2.
[52]   De l’art de conferer. Essais III, 8. O. C., 917. Montaigne assim se expressa: «L’obstination et l’ardeur d’opinion est la plus seure preuve de bestise». Posição semelhante ele relata em: De l’experience. Essais III, 13. O. C., 1053; De mesnager sa volonté. Essais III, 10. O. C., 991.
[53]   Essais II, 12.
[54]   Essais I, 56.
[55]   L. Eva, A figura do Filósofo, 484. Ele declara que: «Tudo se passa como se a experiência cética da incapacidade de encontrar a verdade, que pode conferir a esse filósofo uma identidade intelectual e lhe propiciar certa tranqüilidade, se convertesse num paradoxal paradigma: ao mesmo tempo que ai se retrata a condição permanentemente investigativa do cético, anuncia-se a necessidade de refazer a experiência, porquanto ela comporta sempre algo de «impremeditado e fortuito» - como se a própria casualidade com que os eventos se apresentam anunciasse um ganho irredutível na efetividade da ação e da experiência, que não pode estar contido na autoridade do modelo tomado como paradigma filosófico dessa experiência».
[56]   De la liberté de conscience. Essais II, 19. O. C., 651.
[57]   R. Ragghianti,  Introduzione a Montaigne, 26.
[58]   Apologia de Raimond Sebond. Essais II, 12. O. C., 427: «Que l’homme qui presume de son sçavoir, ne sçait pas encore que c’est que sçavoir; et que l’homme qui n’est rien, s’il pense estre quelque chose, se seduit soy mesmes et se trompe»?. Essa é uma das sentenças que Montaigne conservava na sua biblioteca, cfr. Epístola aos Gálatas 6,3.
[59]   Apologie de Raimond Sebond. Essais II, 12. Les Essais (1595), 473. Argumento que Montaigne desenvolve em De la Presunption. Essais II, 17.
[60]   Apologie de Raimond Sebond. Essais II, 12, O. C., 467.
[61]   C. Neutzling, Tolerância e democracia, 79.
[62]   J. Dewey, Characters an Events, 2. Octagon Books, New York 1970, 544.
[63]   Cf. C. Neutzling, Tolerância e democracia, 77.
[64]   De la vanité. Essais III, 9. O. C., 925.
[65]   Apologie de Raimond Sebond. Essais II, 12. O. C., 427; 429; 436.
[66]     R. de Lima, O conceito e a prática da tolerȃncia. Revista Espaço Acadêmico – Ano III, n°. 26. Julho (2003). Ele afirma que: «Quem se pretende possuir "a verdade", ou melhor, "a certeza", termina sendo intolerante em aceitar outros posicionamentos, se fechando a escuta de tudo que apresente diferente ou incompreensível ao seu esquema conceitual de fala e ação. O moralista, por exemplo, é in-tolerante com os que possuem valores diferentes do seu; em verdade, sabemos se tratar de um moralista quanto sofremos a imposição de seus valores, baseado em sua “certeza moral”. O moralista carrega a ambição de impor a todos, universalizando seus valores como certos. Enfim, toda intolerância tende ao totalitarismo" ("integrismo", em matéria religiosa). Ser intolerante é manter uma "atitude de ódio sistemático e de agressividade irracional com relação a indivíduos e grupos específicos, à sua maneira de ser, a seu estilo de vida e às suas crenças e convicções”. Tradicionalmente, a religião tem sido o principal agente da intolerância, como também é vítima».
[67]    P.F. D’arcais, G. Vattimo, M. Onfray, Atei o Credenti?  19.
[68]   Des cannibales. Essais I, 31.
[69]   Des Coches. Essais III, 6.
[70]   Journal de Voyage. O. C., 1203.
[71]   T. Todorov,  La paura dei barbari, 122ss.
[72]   T. de S. Birchal,  O EU nos Ensaios, 119.
[73]    V.B.J. Chelikani, Reflexões sobre a tolerância, 73.
[74]   P. Leschemelle, Montaigne: le badin de la force. Imago, Paris 1991, 10.
[75]   Apologie de Raimond Sebond. Essais II, 12. O. C., 482.
[76]   Id., 485.
[77]   Em nome da tolerância, isto é, que se combate de todos os constrangimentos, desde o século XVIII que se cometeram inúmeros crimes contra a própria humanidade, pois uma razão intolerante e absoluta somente justifica determinadas atrocidades. Cfr. A. Alguiló,  Por uma verdadeira cultura da tolerância.
[78]   De la vanité. Essais III, 9. O. C., 926.
[79]   R. Ragghianti,  Introduzione a Montaigne, 33. Diz que: «A inadequation é a figura constante da relação sujeito – objeto em conseqüência do parcelamento do ser: a humana condição é um concorrer de diversidade».
[80]   Apologie de Raimond Sebond. Essais II, 12. O. C, 480: «... l’homme est plein de foiblesse et de mensogne».
[81]   M. Conche, Montaigne et la philosophie, 120.
[82]   Apologie de Raimond Sebond. Essais II, 12. O. C., 499.
[83]   Ibid.
[84]   T. de S. Birchal, O EU nos Ensaios, 42.
[85]   Apologie de Raimond Sebond. Essais II, 12. O. C., 508.
[86]     S. Mancini, Merleau-Ponty, 94. Taxativamente afirma ele que: «A busca da verdade coloca em evidência originária a fluidez dos fenômenos [...]. O ceticismo nos ensina depurar a empresa filosófica da perversa vontade de domínio, da “loucura do Cogito”, oferecendo a modalidade mais autêntica do habitar na verdade: essa não é a impossível cristalização do sentido nas arquiteturas fechadas da representação... pois a vida é a contínua inversão dos nossos projetos e que a verdade lhe habita desestruturando-la e constrangido a existência de uma projectualidade permanente, sempre precária e exposta à contingência. A verdade resulta concebida como inversão contínua da nossa representação da verdade, forçada a deixar-se domesticar na teleologia organizada pelo Cogito e invés fluente na teleologia do Logos selvagem, como diz no Le visible et l’Invisible».
[87]   R. Ragghianti,  Introduzione a Montaigne, 34.
[88]   De la Presumption. Essais II, 17. O. C., 617.
[89]   A. Comte-Sponville,  Je ne suis pás philosophe, 39.
[90]   S. Benvenuto,  Lo spettro di Montaigne si aggira per l'Europa, 47.
[91]   Du pedantisme. Essais I, 25. O. C., 138.
[92]    V.B.J. Chelikani, Reflexões sobre a tolerância, 50.
[93]   De l’institution des enfans. Essais I, 26. O. C., 151.
[94]   Du pedantisme. Essais. I, 25. O. C., 132.
[95]   N. Panichi, I vincoli del disinganno, 12. Analisando o pensamento de Montaigen diz que: «É a razão então que nos faz errar».
[96]   Id., 13.
[97]     C.M. Azar Filho,  Montaigne e Sócrates, 835.
[98]   De l’experience. Essais III,13. O. C., 1051.
[99]   Id., 1046 \ 1047. Cfr. Des Livres. Idem, 387ss.
[100]  N. Panichi, I vincoli del disinganno,281.
[101]    R. Ragghianti,  Introduzione a Montaigne, 11. Afirma ele que: «O seu método rejeita da eloqüência, da retórica, do silogismo categórico, que opõe a inteligência que não deve se exercitar com vazia sutilezas mas abraçar as coisas «inteiramente, estreitamente e profundamente».
[102]  De l’experience. Essais III,1. O. C., 1054.
[103]  N. Panichi,  Montaigne, 210.
[104]  S. Zweig,  Montaigne, 14. Afirma o estudioso montaigneano que: «La sagesse et la grandeur de Montaigne, j’en ai fait l’experiénce sur moi-même».
[105]  De l’exercitation. Essais II, 6. O. C., 359.
[106]  Des Livres. Essais II, 10. O. C., 388.
[107]  N. Panichi,  Montaigne, 174.
[108]  De la gloire. Essais II, 16. O. C., 603; 611.
[109]  Convive-se com os estrangeiros, com os de cores e costumes diversos, com os gays, com os  handicaps e com os pobres, até se admite na própria casa ou no negócio e se oferece para os seus «movimentos», retém-nos desprotegidos e engraçados; mas um acolhimento de respeito e de igualdade realmente existe? Essa diferenciação é tão comum, tanto que na primeira oportunidade se demonstra certa resistência ou se faz «piadas» de «mau-gosto», isso quando não se atribui a esses os males presentes na sociedade.
[110]  De la resemblance des enfans aux peres. Essais II, 37. O. C., 739.
[111]  M. Conche,  Montaigne et la conscience heureuse, 47.
[112]  De l'institution des enfants. Essais I, 26. O. C., 162. Ele afirma a necessidade da filosofia, como ciencia da vida, de ser ensinada a todos, inclusive às crianças: «A filosofia é a ciencia que nos ensina a viver e que a infancia, como as outras idades, dela pode tirar ensinamentos, porque motivo não lhe comunicaremos? (…). Ensina-nois viver quando è passadaa vida». Jà no outro ensaio: De l'exercitation. Essais II, 6. O. C., 360. Ratifica Montaigne o valor da filosofia para a vida e enraizada na propria cotidianidade, como a sua filosofia: «Quem se embriaga com sua ciencia ao olhar para baixo, erga os olhos para cima e contemple os séculos passados. Baixarà o tom vendo milhares de espiritos aos pés dos quais não poderia elevar-se (…). Somente Sócrates pos em pratica o preceito que recebera de Apolo: conhece-te a ti mesmo. O que levou ao desprezo por si próprio e tambem a ser julgado pela posteridade digno do epiteto de sabio. Quem assim se conhecer, ouse tornar-se conhecido dos outros».
[113]  N. Panichi,  I vincoli del disinganno, 21.
[114]  De l’institution des efans. Essais I, 26. O. C., 168.
[115]  V.B.J. Chelikani, Reflexões sobre a tolerância, 56. Descreve dessa maneira o porquê da necessidade da tolerância no relacionamento interpessoal: «Diferentemente dos direitos humanos, a tolerância não é uma exigência em relação ao outro, é uma disciplina interna. Para se ter uma atitude de tolerância sã, é preciso exprimir sua diferença em relação a outrem sem medo ou arrogância. É necessário, também, que os outros reconheçam e aceitem a existência dessa diferença e do pluralismo, como nós mesmos nos dispomos a fazê-lo. Para ser fiel a si próprio, é necessário exprimir sua diferença. Ser tolerante não é permanecer passivo diante dos acontecimentos, sem querer intervir. Estar livre do medo é uma virtude pessoal que dever-se-ia adquirir, a fim de praticar a tolerância natural».
[116]  S. Mancini, Merleau-Ponty, 87. Essa vida inserida na espontaneidade natural e de uma percepção pré-categorial é assim definida: «Trata-se de um espaço precário e instável, porque privado de uma adequada instrumentação conceitual, que será suprimido por Descartes em nome da evidência clara e distinta».
[117]  Já inferia isso Montaigne, quando em certos «ensaios» rebatia que por médio da presunção se provocava descriminação e se tratava indiferentemente ou com ares de invisibilidade determinadas classes: De la presumptiom. Essais II, 17. O. C., 626; De la ressemblance des enfans aus peres. Essais II, 37. O. C., 741; Des coches. Essais III, 6. O. C., 882; De la vanité. Essais III, 9. O. C., 938.
[118]  Basta recordar entre outros os catadores de lixo, funcionários dos albergues, as seguranças, os garis, os enfermeiros e, de alguma maneira, as prostitutas; são usados e usufruídos, mas se faz questão de não os reconhecer fora do «serviço» prestado, como se revelasse o lado «sujo» da sociedade.
[119]  P. Leschemelle, Montaigne: tout entier et tout nu, 148.
[120]  Del’institution des enfans. Essais I, 26. O. C., 165. Assim expressa ele a respeito de uma educação indiferente e que ignora a diversidade do estudante: «Ostez moy la violence et la force».
[121]  N. Panichi,  I vincoli del disinganno, 68.
[122]  Du repentir. Essais III, 2. O. C., 784. Afirma Montaigne: «Excusons icy ce que je dy souvent, que je me repens rarement et que ma conscience se contente de soy, non comme de la conscience d’um ange ou d’un cheval, mais come la conscience d’um homme, adjousant toujours ce referein, non um referein de cerimonie, mais de naifve et essentielle submission: que je parle enquerant et ignorant, me rapportant de la resolution, purement et simplement, aux creances communes et legitimes. Je n’enseigne poinct, je raconte». Ao canto suo afirma Pascal seguindo Montaigne, Pensées 358:«L’homme n’est «ni ange ni bête».
[123]  De l’art de conferer. Essais III, 8. O. C., 901; 905-6; 916.
[124]  G. Greco, Montaigne: um umanista, 118.
[125]  M. Conche, Montaigne et la philosophie, 115.
[126]  Des coches. Essais III, 6. O. C., 881. De l’art de conferer. Essais III, 8. O.  C., 906.
[127]    R. Ragghianti,  Introduzione a Montaigne, 38. Como magistralmente afirma o estudioso italiano: «A filosofia de Montaigne é uma filosofia da lentidão, da fadiga do aprender, de Qoélet: tudo atravessado pelo tema da vaidade como atributo do existente».
[128]  De la vanité. Essais III, 9. O. C., 942.
[129]  Du Jeune Caton, Essais I, 36. O. C., 226.
[130]  Como por exemplo: J. De Finance, De l'un et de l'autre (1993); E. Lévinas, L'autrement; M. Buber, Ich and du (1965); P. Ricoeur, Soi-meme come un autre (1950); J. Starobinski, Montaigne en mouvement (1993).
[131]  De l’institution des enfans. Essais I, 26. O. C., 159. Du pedantisme. Essais I, 25. O. C., 138. De l’experience. Essais III, 13. O. C., 1044.
[132]  P. Gilbert, Le ragioni della sapienza, 145.
[133]  De l’experience. Essais III, 13. O. C., 1067.
[134]  P. Leschemelle,  Montaigne: tout entier et tout nu, 193.
[135]  J. Staronbisnki, Montaigne em Mouvement, 453.
[136]  De la gloire. Essais II,16. O. C., 608. Assim se expressa Montaigne sobre a consciência pessoal como critério de valor: «J’ay veu de mon temps mill’hommes soupples, mestis, ambigus, et que nul ne doubtoit plus prudans mondain que moy, se perdre ou je me suis sauvé».
[137]  N. Panichi, I vincoli del disinganno, 77. Pra ele em Montaigne: «A «auto-afirmação» de si, no sentido do homem já copernicano, é uma forma que paradoxalmente o expõe, o ameaça e o torna inseguro de si mesmo (Que sais-je? Qui suis-je?). A «centralidade» do homem se revelou como o ultimo ato ilusório da dramaturgia suicida da razão dogmática que se volta contra si mesma».
[138]  Que philosopher c’est apprendre a mourir. Essais I, 20. O. C., 91.
[139]  Qu’il ne fault juger de nostre heur qu’après la mort. Essais I, 19. O. C., 79.
[140]  R. Ragghianti,  Introduzione a Montaigne, 18. «A futilidade e inutilidade de preparar-se à morte, a vida e a morte são reciprocamente estranhas e a concepção estóica de I,19 e I,20. A ética do dever racional em oposição ao hedonismo é inconciliável com a doutrina do Nosso, que parece fazer próprio o prudente gozo dos prazeres que se persegue eliminando a pena e o exagerado desejo».
[141]  V.B.J. Chelikani,  Reflexões sobre a tolerância, 69. O pensador ilustra bem essa realidade quando afirma que: «Uma sociedade aberta pode sobreviver apenas se seus membros possuírem um espírito aberto e souberem tirar lições do passado para determinar sua conduta futura sem, por isso, tornarem-se prisioneiros, cultivando sentimentos de amargura, de humilhação, de ciúmes ou de vingança. O tempo geralmente cicatriza muitas feridas, a menos que se queira perpetuar a lembrança com comemorações e monumentos. É preciso esquecer certos acontecimentos, após ter tirado deles as lições necessárias, para poder dar um novo início às relações humanas. Os interesses em conflito devem buscar conciliar-se, caso não seja possível erradicá-los».
[142]  Que philosopher c’est apprendre a mourir. Essais I, 20. O. C., 94.
[143]  Des coches. Essais III, 6. O. C., 877.
[144]  De l’amitié. Essais I, 28. O. C., 182.
[145]    N. Panichi,  I vincoli del disinganno, 81-82.
[146]    E. Rotterdam,  Elogio da Loucura, 31.
[147]  N. Panichi, I vincoli del disinganno,413.
[148]  J. Starobinski, Montaigne em Mouvement, 213.
[149]  De la vanité des paroles. Essais I, 51. O. C., 293. Diz Montaigne da banalidade das palavras: «Car la bestise et facilité que se trouve en la commune».
[150]  Sêneca, Lettere a Lucilio: Lettera 1. BUR, Milano 2009, 59. O qual testemunha desse jeito: «Cada hora no nosso passado pertence ao domínio da morte».
[151]  Aqui se faz a pergunta: o que leva jovens bem-estantes a se enveredarem pelo mundo da droga, do banditismo e da violência? O que faz com que indivíduos traiam covardemente os princípios da convivência social, os seus mesmos ideais e não hesitem em destruir a vida dos outros? Sem querer oferecer uma resposta exaustiva e única, pensa-se que seja fruto da banalização antropológica, quer dizer, o homem não se reconhece a si mesmo e não encontra uma justificativa para a própria vida, a não ser viver o «presente» como lhe apraz, sem se importar com as conseqüências e o que isso possa provocar.
[152]  De Democritus et Heraclitus. Essais I, 50. O. C., 290.
[153]  N. Panichi, Montaigne, 272.
[154]  De Democritus et Heraclitus. Essais I, 50. O. C., 290. Montaigne enumera os valores e as vilezas da alma humana, que vão da santidade à superficialidade, da bondade ao ridículo da convivência humana.
[155]  De Democritus et Heraclitus. Essais I, 50. O. C., 292.
[156]    C. Neutzling,  Tolerância e democracia,74.
[157]  Des cannibales. Essais I, 31. O. C., 203.
[158]  Divers evenemens de mesme conseil. Essais I, 24. O. C., 129. Essais (édition en trois volumes), I. Gallimard, Paris 1965, 199. Montaigne expressa assim a sua visão acerca da ambição desmesurada que causa intolerȃncia  e violência:  «Quem tem ambição e aspira à celebridade deve, ao contrário, evitar uma prudência exagerada, não prestar atenção às suspeitas nem a elas se entregar. O medo e a desconfiança dão origem à ofensa e a provocam».

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