Filme difícil de digerir, um tanto quanto denso. A experiência não é das mais agradáveis. De fato, durante a projeção fiquei tentado a desistir de chegar até o final – não pela temática do projeto, mas pela maneira que o filme é conduzido. Uma sensação de mal estar é quase que inevitável durante os 89 minutos que nos encontramos em frente à tela.
O responsável pela façanha é o cultuado
Harmony Korine, que estrou no cinema ao assinar o roteiro de um outro filme perturbador:
Kids. Em
Gummo, ele estreia como diretor e faz algumas experiências bizarras no controle das câmeras.
É um exercício penoso tentar elaborar uma sinopse para este filme, porém se eu tivesse que identificar um protagonista para a história (se é que podemos dizer que há uma história) seria a caótica cidade de Xenia, em Ohio. Ao mesclar ficção com fatos reais, Korine nos apresenta a um lugar pós-apocaliptico após um tornado ter devastado à cidade em questão.
Muitos morreram, pessoas foram dizimadas e famílias despedaçadas.Já não há mais adultos e agora as crianças e adolescentes sobrevivem por eles mesmos. Neste contexto, como seria a vida destas pessoas?
Harmony Korine traz uma visão niilista em sua película: há uma desconstrução de padrões difícil de suportar. A cidade é imunda e desorganizada – não há uma única cena que não seja extremamente poluída (entenda sujeira, brinquedos despedaçados, pernas de boneca penduradas, camas desarrumadas, louça sem lavar, água preta, carros quebrados, roupas velhas, unhas sujas, entre outros).
O filme não tem uma história central. Ele começa sem um início e termina sem um fim. Simplesmente somos arremessados para dentro da cidadezinha de Xenia. Como uma espécie de guia turístico, o diretor nos convida a conviver por alguns minutos com a rotina de seus moradores. Somos introduzidos para a escória do submundo humano – vamos participar da antivida de seus habitantes e mesmo querendo fechar os olhos, vislumbraremos apenas como se dá a sobrevivência daqueles que, de alguma maneira, já estão mortos.
Dentre estes habitantes, temos um núcleo inspirado no
White Trash – ou
Lixo Branco, termo utilizado para pessoas brancas de baixíssimo estatuto social, cultural e econômico. Equivale a chamar as pessoas de selvagens ignorados pela civilização. De fato, é isto que encontramos. Pessoas esquecidas que cultivam a sua própria imundice, como num movimento que diz “
é isto que vocês querem? Então é isto que vocês teem!” – um freak show depressivo, onde encontramos a podridão da humanidade concentrada num único local.
O mais irônico, e talvez este seja o ponto que Harmony Korine pretenda chegar, é que por mais distante que este mundo pareça estar de nós, encontramos nele tão somente o que encontramos no nosso dia-a-dia. Não há nada de novo, senão repetição do nosso cotiano. Talvez seja por isto que nos sentimos tão perturbados: quando encontramos à nossa imundice espelhadas diante de nós, sentimos repulsa – quando não vergonha – de quem somos.
Basta pegar os elementos tratados em Gummo e comparar com nossa vizinhança – ou mesmo dentro de nosso lar: suícido – há relatos desesperados pelo fim do tormento que é esta vida sem sentido, nem razão; prostituição – há pessoas que vendem seus próprios entes para se prostituirem em troca de algum dinheiro; abuso sexual – pais que estupram filhos e pessoas que forçam uma relação; racismo; dependência de drogas; tortura de animais; violência pró-diversão; doença; preconceito e homofobia.
Tudo isto manifestado por jovens menores de idade. O tapa na cara é forte. A discussão é hiper-real justamente por que não sabemos o que seria da vida caso estivéssemos nesta posição surreal. Existe o real, evidenciado pelas situações acima, ofuscada por um fictício, que é o universo proposto porKorine. Quando pegamos todos os elementos e jogamos num liquidificador temos uma sociedade hiper-real: não falsa, não fantasiosa, mas real em um determinado nível de modo que não podemos alcançar esta realidade – por isto hiper-real.
Filme de alto teor culto e reflexivo, porém na mesma proporção encontramos a melancolia, pessimisto e desânimo. Fora a trilha sonora que te leva entre músicas calmas dos anos 50 para o thrash metal mais pesado possível. Isto atenua ainda mais o mal estar, como se lhe jogassem para cima e para baixo sem freio nem remorso.
Eu, particularmente, não pretendo revisitar o filme, a não ser em minha mente, onde ele está bem vivo, principalmente algumas cenas chocantes que insistem em permanecer. Termino esta resenha e vou direto tomar uma aspirina, para curar a dor de cabeça, e um energético, para me trazer disposição e – quem sabe? – um sorriso. Korine pegou pesado demais neste trabalho. Porém eu bato palmas de pé para o diretor e irei acompanhar os seus outros trabalhos, afinal ele atingiu o seu objetivo apenas ao trazer o espelho para a tela de projeção.
Gummo. 1997. EUA. Direção e Roteiro: Harmony Korine. Jacob Reynolds, Chloë Sevigny, Nick Sutton, Jacob Sewell.