Desespero ou esperança






Medo e esperança são faces da mesma moeda, dizem os budistas. Se temos desejo, temos esperança. Se temos apego, temos medo. Um belo resumo de nossa vida. E oscilando entre medo e esperança, esquecemos de viver no presente. "Hoje temos um grande número de pessoas com depressão, tristezas ou remorso. Esses sentimentos são predominantemente causados pelo passado", escreveu o monge Genshô, da tradição zen, no seu blog, O Pico da Montanha. Gosto de acompanhar o que diz o monge Geshô. Ele dá sempre um toque sobre a vida cotidiana. Aqui ele fala como o passado pode arruinar o presente, se ficarmos agarrados a ele. Mas também escreve sobre os riscos de se grudar ao que pode ou não acontecer. "Outro problema é o futuro. O que farei amanhã, dívidas que terei de pagar, problemas a serem resolvidos, tudo isso gera ansiedade. Quando você vive no futuro é ansioso, quando vive no passado é deprimido".
Bom, né? Vivemos mesmo num tempo em que é muito difícil estar plenamente no presente, tudo nos puxa para fora. Nessa existência plena de distrações em que temos pouco tempo de entrar em contato com o nosso interior, com nosso corpo e as sensações provocadas pelos cinco sentidos. Muito longe do tempo e da realidade em que acordar de manhã respirando cheiro de mato e neblina, dar milho para as galinhas, rachar lenha, plantar ou cozinhar nos levava continuamente para o momento presente.
Também somos igualmente atraídos pelo passado ou pelo futuro. Nos preocupamos com o que pode ocorrer por causa dos nossos inúmeros compromissos, excesso de responsabilidades e mil atividades durante o dia. Uma vida frenética. E pelo passado, por causa de uma idealização exacerbada do que já aconteceu, das inseguranças que nos grudam como cola numa cadeira ao que está garantido, e pela falta de abertura às mudanças e transformações. A vida é obrigada a nos dar um pontapé para que tenhamos coragem para sair da zona de conforto.
Mas o que acontece quando se vive mais focado no presente? Um milagre: abre-se um espaço em que podemos viver momentos felizes, principalmente porque estamos mais abertos e prestando atenção no que está acontecendo no instante. Por exemplo: agora entrou um raio de sol no quarto e me aqueceu nesse dia frio; agora sinto meus pés quentinhos num sapato macio; agora meu namorado me abraçou e senti o perfume amadeirado de sua colônia de barba. No agora, a vida ganha cores, cheiros, sons, toques, sabores que proporcionam inúmeras pequenas alegrias. Da depressão e tristeza causadas pelo apego ao passado, podemos ir para uma intensa sensação de leveza e felicidade.
Da ansiedade e angústia pelo futuro, para uma sensação de plenitude e abundância, e um sentimento reconfortante de que tudo vai dar certo. Pelo menos uma vez já nos sentimos assim: quando éramos bebês. E, por um momento, tínhamos todas as nossas necessidades satisfeitas: barriga cheia, cobertor macio, calor amoroso de mãe, paz e tranquilidade. Inteiramente imersos no presente, éramos felizes.
Esse estado de ser pode ser descrito como o de um profundo e silencioso isolamento, entregue ao fluxo da existência. "Esta condição inicial, de um abandono total ao fluxo da vida, me parece a pedra de toque da futura sensação de liberdade buscada em muitas práticas de meditação orientais. Trata-se de uma condição extrema da vida, que buscamos repetir numa prática do pensamento ou corpo, com intuito de encontrarmos a mesma paz e significado que um dia experimentamos. Uma forma de significar o indizível estado de só ser, que um dia vivenciamos sem experimentar - pois não havia, naquele momento inicial, um alguém para fazê-lo", me diz o psicólogo e pensador Levi Leonel de Souza. "Esse estado de solidão essencial pode ser experimentado nas etapas posteriores da vida em certos momentos bastante específicos - no clímax sexual, no sono profundo, na meditação e outras experiências-limites. Nestes instantes, podemos fruir de uma sensação corporal de indizível liberdade - um estado de profunda leveza de ânimo, com um significado atemporal e inespacial", afirma com precisão Levi. Essa sensação de plenitude é o que vamos tentar encontrar outras vezes na vida. "Esta falta de referências no tempo e no espaço pode ser uma das buscas ao que chamamos 'liberdade'", ele diz.
É isso. A liberdade nos faz sentir vivos e plenos. Ao nos desligarmos das expectativas dos compromissos e possíveis cenários futuros, podemos respirar mais relaxados. Vivemos a cada momento o que tem de ser vivido. Meu Deus, que alívio

Dom Casmurro

Dom Casmurro, de Machado de Assis 


 
Vivo só, com um criado. A casa em que moro é própria; fi-la construir de propósito, levado de um desejo tão particular que me vexa imprimi-lo, mas vá lá. Um dia. há bastantes anos, lembrou-me reproduzir no Engenho Novo a casa em que me criei na antiga Rua de Mata-cavalos, dando-lhe o mesmo aspecto e
economia daquela outra, que desapareceu. Construtor e pintor entenderam bem as indicações que lhes fiz: é o mesmo prédio assobradado, três janelas de frente, varanda ao fundo, as mesmas alcovas e salas.
Na principal destas, a pintura do tecto e das paredes é mais ou menos igual, umas grinaldas de flores miúdas e grandes pássaros que as tomam nos blocos, de espaço a espaço. Nos quatro cantos do tecto as figuras das estações, e ao centro das paredes os medalhões de César, Augusto, Nero e Massinissa, com os
nomes por baixo... Não alcanço a razão de tais personagens. Quando fomos para a casa de Mata-cavalos, já ela estava assim decorada; vinha do decênio anterior. Naturalmente era gosto do tempo meter sabor clássico e figuras antigas em pinturas americanas. O mais é também análogo e parecido. Tenho
chacarinha, flores, legume, uma casuarina, um poço e lavadouro. Uso louça velha e mobília velha.
Enfim, agora, como outrora, há aqui o mesmo contraste da vida interior, que é pacata, com a exterior, que é ruidosa.
O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor,não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se
só me faltassem os outros, vá um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mais falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não
agüenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim. Os amigos que me restam são de data recente; todos os antigos foram estudar a geologia dos campos-santos. Quanto às amigas, algumas datam de quinze anos, outras de
menos, e quase todas crêem na mocidade. Duas ou três fariam crer nela aos outros, mas a língua que falam obriga muita vez a consultar os dicionários, e tal freqüência é cansativa. 

SIM, E' POSSIVEL!!

Sobre as possibilidades (de Rilke) 




É possível que não se tenha visto, conhecido e dito nada de real e importante? É possível que se tenha tido milênios para olhar, refletir e anotar e que se tenha deixado passar os milênios como uma pausa escolar, durante a qual se come fatias de pão com manteiga e uma maçã?

Sim, é possível.

É possível que, apesar das investigações e dos progressos, apesar da cultura, da religião e da filosofia, se tenha ficado na superfície da vida? É possível que até se tenha coberto essa superfície - que, apesar de tudo, seria qualquer coisa - com um pano incrivelmente aborrecido, de tal modo que se assemelhe aos móveis da sala durante as férias de Verão?

Sim, é possível.

É possível que toda a História Universal tenha sido mal-entendida? É possível que o passado seja falso, precisamente porque sempre se falou das suas multidões, como se dissertasse sobre uma aglomeração de pessoas, em vez de falar de uma única, em torno da qual elas estavam, porque se tratava de um desconhecido que morreu?

Sim, é possível.

É possível que se tenha julgado ser preciso recuperar o que aconteceu antes de se ter nascido? É possível que se tivesse de lembrar a cada um que ele, de fato é proveniente de todos os antecessores, tendo ele disso conhecimento e não devendo dar ouvidos a outros que soubessem outras coisas?

Sim, é possível.

É possível que todas estas pessoas conheçam em pormenor um passado que nunca houve? É possível que todas as realidades nada sejam para elas; que a sua vida decorra, desligada de tudo, como um relógio numa sala vazia?

Sim, é possível. 

Pra se pensar ....

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