Indagações sobre o mal

Indagações sobre o mal

As muitas incertezas que rondam o mal são um convite à reflexão sobre a experiência humana
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Wilker Sousa
Questionada sobre quais de suas obras mais estimava, Clarice Lispector citou o conto “O Ovo e a Galinha” e também “uma coisa que eu escrevi sobre um bandido”. A escritora aludia à crônica “Mineirinho”, publicada nas páginas do Jornal do Brasil. Naquele texto breve e prenhe de sensibilidade, Clarice demonstrava sua revolta mediante a brutalidade com que a polícia carioca assassinara um bandido conhecido como Mineirinho. Paralelamente à enumeração de cada um dos 13 tiros disparados à queima-roupa, o texto narra o crescente percurso de perplexidade vivenciado pela autora até culminar na mais completa comiseração: “O décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro”. Se o propósito do policial era matar o bandido, o que o teria levado a disparar 13 tiros, quando apenas um bastaria?
TrivialidadeA convite da revista New Yorker, a filósofa Hannah Arendt foi a Jerusalém em 1961 fazer a cobertura do julgamento de Adolf Eichmann, integrante do Reich responsável pelo transporte de milhares de judeus para os campos de concentração. Arendt via na experiência totalitária a cristalização do chamado “mal radical”, pois o regime nazista eliminara a espontaneidade e a liberdade individual dos homens, tornando-os supérfluos, o que resultou em Auschwitz. Ao acompanhar o julgamento, a filósofa não deparou com a personificação da malignidade e do antissemitismo. Ao contrário, o réu não demonstrava qualquer aversão ao povo judeu. Tivera inclusive uma amante e um amigo de escola judeus.
O que o motivara, então, a colaborar com tamanha barbárie? Tão somente acatar e cumprir prontamente as ordens que lhe foram passadas. “Ele estava perpetrando um mal radical, por conta da descartabilidade do ser humano. No entanto, o fez sem se dar conta da monstruosidade”, explica o jurista Celso Lafer, autor de A Reconstrução dos Direitos Humanos, um Diálogo com o Pensamento de Hannah Arendt (1988). “O que Hannah Arendt aponta em sua análise sobre o regime nazista é que deixou de haver uma normalidade tal como nós a entendemos. A normalidade nazista baseava-se num estado que perpetrava o mal radical. Por causa disso, alcançou também aqueles que estavam por perto, inclusive o cidadão comum e as próprias organizações da comunidade judaica que, tentando evitar um mal maior, acabaram contribuindo para que o mal se perpetrasse”, completa Lafer. Com base nessa inabilidade de pensamento e na completa ausência de sensibilidade por parte de Eichmann, Arendt cunhou a expressão “banalidade do mal”, desenvolvida no livroEichmann em Jerusalém: Um Relato sobre a Banalidade do Mal (1963).
Guardadas as devidas diferenças histórico-sociais, não seria exagero supor que as categorias do “mal radical” e da “banalidade do mal” se aplicam à experiência do século 21. A assustadora frieza da qual padecia Eichmann parece encontrar terreno fértil para propagação em meio ao modo de vida contemporâneo, cujo ritmo alucinado acaba por acentuar o apagamento do indivíduo e, por conseguinte, minar a alteridade. Segundo o psicólogo Antonio de Pádua Serafim, “as pessoas que apresentam um comportamento de maldade têm antes um defeito na formação do caráter. O caráter é constituído de sentimentalismo, que é a capacidade do indivíduo de se colocar no lugar do outro e ter respeito pelo outro. O que nós encontramos é um grupo de pessoas que não têm isso”. Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica do Instituto de Psiquiatria da USP (Nufor), Antonio é enfático ao comentar a influência do modo de vida contemporâneo na ocorrência de crimes atrozes: “Sem dúvida. Hoje vivemos um aumento da violência urbana e, além disso, a globalização exige o ‘ter’ e não necessariamente o ‘ser’. Existe uma competitividade muito grande. Essa condição sociofuncional é de fato um disparador para a ocorrência dessas características”.
Inato?A despeito dos fatores sociais que possam favorecer sua prática, o mal é inato? Indivíduos que cometem crimes brutais e também aqueles com comportamentos considerados “malévolos” trariam o mal marcado em seus DNAs? “Com relação à maldade, eu acredito que exista uma predisposição biológica. É muito difícil um psicólogo falar assim, mas eu tenho uma formação mais psicobiológica. Há pessoas que têm algumas predisposições na sua genética e a interação com determinados estilos de ambiente vai potencializar essas características”, defende Antonio Serafim. Crer na predisposição biológica para o mal não significa, contudo, considerá-lo uma doença, acredita o psicólogo: “É uma necessidade pura e simples de destruição. As pessoas que cometem isso não são necessariamente doentes. (…) Não são doentes do ponto de vista nosológico [ramo da medicina que classifica doenças], mas são diferentes da normalidade ao vivenciar as características da maldade”.
Há 11 anos Ilana Casoy dedica-se ao estudo de crimes violentos. Pós-graduanda em criminologia pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), é autora de quatro livros nos quais investiga o perfil criminal de serial killers nacionais e internacionais. Com base no conhecimento e na experiência que acumulou acerca do tema, mostra-se contrária à patologização do mal: “Minha grande preocupação é como, mais uma vez na história, voltamos a achar que o mal tem uma explicação médica. Novamente, nós vamos ter um positivismo agora revestido de uma linguagem mais moderna, como se o senso moral viesse impresso no DNA. Eu temo um pouco esse discurso. Nós temos de cuidar como um todo”. No que se refere ao perfil do criminoso violento, Ilana afirma que “às vezes é um indivíduo com baixíssima tolerância à frustração, que tem um entendimento completo do certo e do errado, mas com uma dificuldade de controle da sua própria vontade, sem que isso seja uma doença mental”.
De olhos vendadosSe a biologização do mal está revestida de polêmicas, opiniões convergem quando o assunto é a influência de um quadro social desfavorável na perpetração da maldade. Ilana comenta que, na grande maioria dos casos que estuda, o histórico dos criminosos já prenunciava o pior: “Eu vejo vidas em vermelho. Quando se escuta a vida desses indivíduos, questiona-se aonde mais poderiam ir. Certamente é um histórico que não era base para um bom futuro. Isso não é regra, mas é a enorme maioria”. Para que se possa coibir tragédias futuras, Antonio Serafim defende a intervenção de profissionais desde a infância de indivíduos agressivos: “Há crianças com características agressivas acima da normalidade e não se faz um trabalho de prevenção com relação a isso. Elas poderiam ser avaliadas e, se submetidas a intervenções precoces, a possibilidade de se transformarem em pessoas mais violentas seria reduzida”.
Trabalhos preventivos, contudo, esbarram no preconceito e na cultura da reparação de males. “Quando se avalia uma criança e se diz que ela é agressiva, pensam que é estigmatização. Há um preconceito com relação a isso, mas na verdade é uma prevenção. (…) Eu sou favorável a que haja a prevenção, mas o Estado brasileiro, infelizmente, é mais reativo”. A postura do Estado brasileiro, à qual se refere Antonio Serafim, é reflexo do discurso preponderante da defesa de políticas voltadas à segurança pública em detrimento de ações preventivas. Afinal, os resultados da coerção são mais palpáveis e passíveis de se tornarem estatísticas. Embora a discussão sobre nosso código penal seja inegavelmente salutar, não se pode, contudo, olhar apenas a ponta do iceberg, acredita Ilana: “Quem pensa a lei nunca vai resolver a criminalidade. O que vai dar frutos são a educação e a inclusão. Com lei eu não acho que se resolva. Vivemos hoje uma era de muita judicialização da solução. Tudo é matéria penal”.
Delegar ao Estado a tarefa de coibir o mal parece, em última instância, uma tentativa de afastá-lo com todas as forças da vida cotidiana, como se houvesse um hiato entre o mal radical, simbolizado na barbárie que alavanca a audiência dos noticiários, e a benevolência inconteste do cidadão comum. Quadro salvador, não fosse tolo. Desafiador, porém, é desmontar simplismos, vislumbrar a alteridade perdida e “atravessar o mal sem se julgar uma encarnação do bem”, parafraseando Tzvetan Todorov.

Santos e Martires: tesouros da fé

O Santos e Mártires: tesouros da Igreja



Por Pe. Jorge Ribeiro

Crer equivale a professar a fé, o que significa redescobrir o caminho da fé para fazer brilhar a alegria e o renovado entusiasmo do encontro com Cristo. Dessa maneira, como o nosso tema propõe, “os santos estão verdadeiramente vivos, porque vivos para Deus e em Deus e, portanto, definitivamente vivos. O seu testemunho é essencialmente esse: viver vale a pena, vale mesmo todas as “penas” pelas quais possamos passar, se vivermos amando, pois só assim a vida se eterniza no Amor que Deus é – e se torna vida em plenitude”. 
A partir dessa assertiva e  da presença que a figura dos santos imprimem na vida dos crentes, pode-se afirmar que: “Os santos são o mais belo testemunho humano do poder do amor. E, no dizer do Apocalipse, são «uma multidão que ninguém pode contar» (cf. 7, 9). Santos escondidos, quase todos, conhecidos apenas dos poucos que com eles conviveram. Santos reconhecidos pela Igreja – mártires, confessores, homens e mulheres, pais e mães, crianças... – e apresentados a todos como exemplo de vida cristã, ou seja, de vida levada no amor e por amor, mesmo no meio das maiores dificuldades. Diante de tal multidão, quando pensamos a sério no seu significado, é difícil não sentir algo ao jeito daquilo que experimentava Santo Inácio de Loiola, antes da sua conversão, convalescendo dos ferimentos sofridos em combate e lendo a vida dos santos: «Se eles fizeram isto, porque não eu? Se eles, pecadores como eu, se deixaram vencer pelo Amor e viveram amando, porque não eu?»”.
Da outra parte da nossa margem nos impressiona a força e coerência das testemunhas qualificadas do Evangelho que se entregam e se consomem até a ultima gota de suas existências, ou seja dos mártires.  Um ideal de assimilação com o próprio Jesus na vida e na morte. O CCC  declara que: “O martírio é o supremo testemunho prestado à verdade da fé; designa um testemunho que vai até a morte. O mártir dá testemunho de Cristo, morto e ressuscitado, ao qual está unido pela caridade. Dá testemunho da verdade da fé e da doutrina cristã. Enfrenta a morte num ato de fortaleza. "Deixai-me ser comida das feras. E por elas que me será concedido chegar até Deus." (2473).
Com o tempo, a Igreja foi percebendo que havia um outro tipo de martírio, incruento, sem derramamento de sangue: o martírio-testemunho de toda uma vida dedicada à fé e ao Evangelho, na aceitação de afrontas e na dedicação aos pobres e sofredores. Será que o doente que aceita a cruz da dor cotidiana não vive uma espécie de martírio em sua identificação com o Cristo crucificado? Sem dúvida, pois o derramamento de sangue não diminui a importância do heroísmo e da generosidade na vida cristã. O ideal do martírio, dessa forma, se estende a todos os estados de vida: religiosa, matrimonial, apostólica, profissional. O missionário, que vive sem medo o perigo da perseguição, é um mártir. A mãe e o pai de um filho com necessidades especiais, em sua generosidade e paciência, vivem o martírio. O jovem que dá testemunho de sua fé num ambiente difícil, às vezes hostil para os cristãos, também vive o martírio.
Qual o significado e o valor do testemunho dos santos e dos mártires? O documento “porta fidei” diz que não podemos aceitar que o sal se tore insipido e a luz fique escondida (cf. Mt 5, 13-16), ou seja, que devemos adquirir o gosto de nos alimentarmos da Palavra de Deus e fazer dela o nosso sustento. Assim sendo, crer em Jesus Cristo é o caminho para poder chegar definitivamente à salvação e ter fé para reavivar, purificar, confirmar e confessar a própria fé. Isso nos impele a dizer que se deve atualizar a fé para que essa não perca o seu valor e a sua beleza.
Mas para que reavivar e reconhecer a beleza da fé? A fé é uma bussola segura que nos orienta no caminho que leva ao Reino; desse modo os cristãos são chamados a fazer brilhar, com a sua própria vida no mundo, a palavra de verdade que o Senhor Jesus nos deixou. E esse é o testemunho e a figura presente dos santos e mártires, pois neles como a todos nós a fé precisa ser atuada por meio do amor (cf. Gl 5, 6). É o amor de Cristo que enche os nossos corações e nos impele a evangelizar, a abraçar novos desafios e até a sacrificar a própria liberdade. Tal possibilidade vem somente acreditando que a fé cresce e revigora, ou seja, que se experimenta a sua beleza no abandonar-se nas mãos de um amor que se experimenta cada vez maior porque tem a sua origem em Deus.
Renovar e testemunhar a fé na renovada convicção, com confiança e esperança, rezando e vivenciando as verdades do Credo. Esse é o nosso empenho no ano da fé e esse é um dos objetivos nesse Congresso, porque a fé é decidir estar com o Senhor, para viver com Ele, pois a fé é um ato de liberdade, a qual exige assumir a responsabilidade social daquilo que se acredita.
Daqui o renovado e sempre atual testemunho dos santos e mártires, os quais nos deixam um legado e uma responsabilidade, de fato,  desde a antiguidade se afirma que “A glória da Igreja são seus mártires: homens, mulheres, jovens e crianças que a tal ponto amaram a Jesus que não lhes importou sofrer ou morrer. A perseguição que o Império romano moveu aos cristãos, durante 300 anos, não os atemorizou ou diminuiu-lhes o número. Tertuliano, grande teólogo, chegou a dizer: “O sangue dos mártires é semente de novos cristãos”. (Confissões). Houve quem se atemorizasse e cedesse no momento da perseguição, pois nem todos receberam a graça e a força para enfrentar o martírio”.
Tudo isso deve nos estimular a reavivar sinceramente a nossa fé e buscarmos ser perseverantes até o fim, mesmo porque o martírio era e continua sendo uma prova imensa, pois supõe  imensos sofrimentos, angústias, torturas, mas também decapitação, mutilação, ser entregue a animais ferozes nos circos, ser queimado, enfim, ser levado à morte física. Santo Inácio de Antiorquia (séc. II), antes de ser despedaçado na boca de leões e tigres, dizia: “Triturado por leões, serei como o trigo que é triturado para com ele se fazer o pão da eucaristia. Deixai-me ser pasto das feras”. Ele pode proclamar a sua fidelidade a Deus e à sua Palavra porque ele se sentia membro da comunidade dos fiéis, onde se evidencia que é na fé da comunidade cristã que cada um é inserido na assembléia do crentes e esse conhecimento da fé introduz na totalidade do mistério salvifico revelado por Deus.
Sabemos todos que o longo da historia e do tempo devemos manter o olhar fixo sobre Jesus Cristo, “autor e consumador da Fé” (Hb 12,2) pois n’Ele encontra plena realização toda a ânsia e anelo do coração humano. Nessa linha que possamos constatar que pela fé Maria, os apóstolos, os discípulos, os mártires e os homens e mulheres de todos os tempos se doaram e testemunharam a alegria de acreditar ao Deus da esperança e na sua presença real e viva no meio da humanidade e é pela fé que vivemos também nós , reconhecendo o Senhor Jesus vivo e presente na nossa vida e na historia.
A consequência imediata da fé vivida é a caridade, pois a fé sem a caridade não dá frutos e a caridade sem a fé seria um sentimento constantemente à mercê da dúvida. Se de um lado é a fé que permite reconhecer Cristo e da outra parte é o seu próprio amor que impele a socorre-Lo sempre que se faz próximo nosso no caminho da vida.
Do que até agora falamos se evidencia que a fé nasce do encontro com o Deus vivo, que nos chama e se revela no amor e que a fé nos abre o caminho e acompanha os nossos passos na historia. É verdade que a fé é a resposta a uma Palavra que interpela pessoalmente, a um tu que nos chama por nome, mas é verdade também que a fé entende que a Palavra quando é pronunciada pelo Deus fiel se torna a coisa mais segura, pois o homem fiel recebe a sua força do confiar-se nas mãos do Deus fiel.
Nessa perspectiva vemos que a santidade, o martírio, o testemunho quotidiano são modos de por em pratica a vida de fé, já que a fé consiste na disponibilidade de deixar-se transformar sempre de novo pela chamada de Deus e assim é que vemos em nosso tempo, que o martírio também é necessário. Um texto da Constituição Dogmática Lumen Gentium n.42 diz que todos “devem estar prontos a confessar Cristo perante os homens, segui-lo no caminho da cruz entre perseguições, que nunca faltam à Igreja”. O martírio dos cristãos não é um fenômeno do passado, como na época do Império romano. Pelo contrário, do ponto de vista histórico: a época dos mártires é a nossa! Segundo um estudo estatístico do maior especialista de estatística religiosa moderna, David Barret, os mártires cristãos, desde a morte de Jesus até nossos dias, têm sido uns 70 milhões, mas, desses, 45 milhões (mais da metade) se concentram no século XX e no que já se passou do século XXI”. A cada cinco minutos, um cristão é assassinado por razão da sua fé. A cada ano, 105 mil cristãos no mundo são condenados ao martírio: um verdadeiro holocausto, do qual se fala muito pouco. O Beato João Paulo II já nos convidava a “refletir sempre sobre o fato de que o século dos mártires foi o século XX e que este século de martírio, que claramente teve alguns picos nos horrores do comunismo e do nacional-socialismo, continua, no entanto, no século XXI”.
O reconhecimento do testemunho dos santos e mártires são universalizados porque a fé é discernida na comunidade, o que vem a significar que o ato de fé da pessoa singular se insere na comunidade, no “nós” comum do povo, que na fé, é como um único homem. A fé é um dom gratuito de Deus que pede a humildade e a coragem de confiar e de se entregar a Ele para ver o luminoso caminho da salvação, ou seja, a fé colhe no amor de Deus manifestado em Jesus o fundamento sobre o qual apoia a realidade e a sua ultima destinação. Dessa maneira a vida de fé enquanto existência filial, é reconhecer o dom original e radical que está na base da existência do homem.   A salvação por meio da fé consiste em reconhecer o primado do dom de Deus, que seria o mesmo que afirmar que a fé em Cristo nos salva porque é n’Ele que a vida de abre radicalmente a um amor que nos precede e nos transforma de dentro, que age em nós e conosco. Assim sendo, o crente é transformado pelo Amor, ao qual se abriu pela fé, e no seu acolher esse amor que lhe é doado a sua existência se dilata além de si mesmo, isso porque na fé o EU do crente se expande para ser habitado por um Outro, para viver em um outro e assim a sua vida se alarga no Amor. Isso vem a nos mostrar que o crente aprende a ver a si mesmo a partir da fé que professa: a figura de Cristo é o espelho na qual ele descobre a própria imagem realizada. Daqui o inserir do crente na comunidade, pois a fé tem uma forma necessariamente eclesial, confessa-se desde o interno do Corpo de Cristo, como comunhão concreta dos crentes, e como afirma o documento “porta fidei”, que “A fé não é um fato privado, uma concepção individualista, uma opinião subjetiva, mas nasce da escuta e é destinada a se pronunciar e a se tornar anúncio”.
Muitas vezes e de tantos modos os cristão católicos são atacados e condenados por idolatria, são acusados de fazer cultos pagãos, de adorar imagens ou outros deuses, entretanto, a idolatria não calha nas devoções ou nas devoções que se tributa aos santos, mas no apego às criaturas, como afirma o CCC ao dizer que: “A idolatria não diz respeito somente aos falsos cultos do paganismo. Ela é uma tentação constante da fé. Consiste em divinizar o que não é Deus. Existe idolatria quando o homem presta honra e veneração a uma criatura em lugar de Deus, quer se trate de deuses ou de demônios (por exemplo, o satanismo), do poder, do prazer, da raça, dos antepassados, do Estado, do dinheiro etc. "Não podeis servir a Deus e ao dinheiro", diz Jesus (Mt 6,24). Numerosos mártires morreram por não adorar "a Besta", recusando-se até a simular seu culto. A idolatria nega o senhorio exclusivo de Deus; é, portanto, incompatível com a comunhão divina” ( §2113).
Configura-se, assim, que a fé sem a verdade não salva, não torna seguro os nossos passos, porque a fé é capaz de oferecer uma luz nova para seguir a estrada da felicidade, pois é a fé que transforma a pessoa inteira, enquanto essa acolhe o Amor, não é um amor apenas de sentimento, mas vida vivida. Entende-se que o amor verdadeiro unifica todos os elementos da nossa pessoa e se torna uma luz nova para uma vida plena. Como nos propomos neste congresso, conhecer mais e melhor a nossa fé, porque o conhecimento da fé é conhecimento que ilumina um caminho na história, dado que o conhecimento da fé ilumina o percurso particular de um povo e de todo o mundo criado.
Dito isso podemos deduzir que a luz da fé é aquela de um rosto no qual se vê o Pai, assim a verdade que fé nos revela é centrada no encontro com Cristo, expressão visível do Amor eterno do Pai, uma Luz que nos iluminando nos chama e quer se refletir no nosso rosto para resplandecer de dentro de nós. Essa é a luz do amor, da verdade, da fé. E o rosto dos santos, segundo a tradição bíblica, refletem o esplendo do Evangelho, a luz da fé. Então, “o exemplo dos santos é um estímulo. Olhando-os, ou nos deixamos ficar na mediocridade de quem não se arrisca a enfrentar o próprio egoísmo, ou, fortalecidos pelo seu exemplo, nos deixamos surpreender pelo Amor e vivemos sempre mais intensamente a nossa doação a Deus e ao próximo. Na verdade, como lembrou Jesus (Marcos 12, 28-34), uma não vai sem a outra, o amor a Deus não se entende sem o amor ao próximo concreto, aquele que vive connosco cada dia; e o amor ao próximo só é verdadeiramente possível se nele nos deixarmos surpreender pela presença de Deus. Na verdade, ou o próximo, a quem amo, é maior do que eu, e me leva a sair de mim, despojando-me, para o acolher, ou então não faço mais do que amar-me nele – suprema forma de egoísmo. Mas para que o próximo seja maior do que eu, preciso de reconhecer nele uma Presença que nos ultrapassa, a ele e a mim: Deus. É por isso que o «amor» do próximo sem Deus nunca vai muito longe e é sempre condicionado. Os diversos materialismos ateus estão aí para o testemunhar”. 
A luz que brota da adesão da fé é uma luz que nos faz humildes, empenhados com o mundo, porque luz encarnada, esse é um caminho que passa pela confissão de um Deus que toma conta de todos e que é possível encontra-Lo. A pessoa de fé se deixa guiar, está pronto a sair de si para encontrar o Deus que surpreende sempre. Quem se coloca em caminho para fazer o bem se avizinha a Deus, porque a fé é uma luz que nos convida a partilhar e conhecer melhor aquilo que amamos. Destarte, a fé precisa passar pela verificação da Palavra e da Comunidade, portanto, a fé reta orienta a razão para se abrir à luz que vem de Deus, para que essa, guiada pelo amor pela verdade, possa conhecer Deus de modo mais profundo. De consequência, quem se abre ao amor de Deus e escuta a sua voz e recebe a sua luz, não pode ter escondido tudo isso para si. A palavra recebida se faz resposta, confissão e testemunho, pois essa é como uma luz que se espelha de rosto em rosto, ou seja, o que chamamos de transmissão da fé, pois essa passa pelo tempo e pelas gerações.
É impossível crer sozinho, sendo assim, a igreja é uma mãe que nos ensina a falar a linguagem da fé, a linguagem da comunhão e da solidariedade. Como afirma o Papa Francisco na Lumem Fidei, quando diz que “A fé não é uma opção individual, mas é uma abertura ao “nós” que se consuma ao interno da comunidade da Igreja. É possível responder em “primeira pessoa” ao creio, à fé, somente porque se pertence a uma comunidade grande, porque se diz “cremos”. A fé tem necessidade de um âmbito onde possa testemunhar e comunicar, ou seja, a comunidade dos crentes”.
A fé comunitária, discernida na Igreja é a multidão dos fiéis que na fidelidade e perseverança exalam o bom perfume do Cristo Encarnado, Vivo e atuante, quer dizer “A multidão incontável de que fala o Apocalipse é constituída por gente «de todas as tribos, povos e nações». No entanto, toda esta gente canta o nome de um só: Jesus Cristo. Ele é a razão de ser dos santos – estes são-no porque viveram no seguimento de Cristo, acolheram o seu Evangelho e deixaram-se converter por Ele. Esta atitude nova perante a vida e, sobretudo, perante os nossos próximos é a imagem de marca do cristão – muitas vezes atraiçoada, mas nunca desmentida. Os santos não «inventaram» nada, simplesmente deram-se ao seguimento de Cristo, segundo a originalidade humana de cada um. E neste seguimento entenderam aquele «o Filho do Homem não veio para ser servido mas para servir e dar a vida em resgate pela multidão» (Marcos 10, 45). Cada cristão encontra-se perante esta alternativa: ser servido (desejar ser servido) ou servir (desejar servir). Da sua opção depende não só o presente mas também o futuro, de modo particular, a entrada na plenitude da vida. Poderá chegar diante de Deus apenas com o desejo, mas é preciso que seja o desejo de servir – pois não se deseja servir e dar a vida impunemente; mais tarde ou mais cedo, este desejo há de rebentar as amarras do egoísmo, levando a vida a converter-se em doação – muito ou pouco, isso não compete a ninguém julgar, nem ao próprio. Deus providenciará”. 
Essa declamação da comunhão dos santos nos autoriza afirmar que a transmissão da fé acontece primeiramente por meio do Batismo, porque  no batismo a pessoa recebe também uma doutrina para professar e uma forma concreta de vida que requer o envolvimento de toda a sua pessoa e o encaminha verso o bem. O Batismo é a ação de Cristo que nos toca na nossa realidade mais pessoal, transformando-nos radicalmente, tornando-nos filhos adotivos de Deus, participantes da natureza divina. Assim, a natureza sacramental da fé encontra a sua expressão máxima na Eucaristia. Essa é nutrimento precioso da fé, encontro com Cristo presente de modo real com o ato supremo de amor, o dom de Si mesmo que gera vida.
Declara a Lumem Fidei que  “Na Eucaristia encontramos o encontro das duas asas sobre as quais a fé percorre o seu caminho: a asa da história : é um ato de memória, atualização do mistério; a outra asa nos leva a passar do visível verso o invisível, ou seja, na Eucaristia aprendemos a olhar a profundidade do real”. Essa constatação nos confirma quanto já dito, isto é, que a fé é um caminho, uma estrada a seguir, aberta ao encontro o Deus vivente;  então, a fé confessa o amor de Deus, origem e sustento de tudo. Não um amor qualquer, mas o amor verdadeiro, que é a medida do amor do fiéis e é essa a alegria da fé, a beleza da unidade de um único corpo e dum único Espírito.
Sustentamos que a fé é una porque se volta ao único Senhor, à vida de Jesus, à sua história concreta que compartilha conosco, ou seja, a fé é una porque compartilhada por toda a Igreja, que é um único corpo e um único Espírito e justamente porque uma só fé, ela deve ser confessada em toda a sua integridade e pureza. A integridade da fé é ligada  à imagem da Igreja virgem, à sua fidelidade no amor esponsal por Cristo, a unidade da fé é a unidade de um organismo vivente. Dessa maneira, a fé se mostra universal, católica, mesmo porque a sua luz cresce para iluminar todo o cosmo e toda a história.
A fé revela como podem serem firmes os vínculos entre as pessoas, quando Deus se faz presente no meios delas, pois o Deus da confiança doa à humanidade uma cidade confiante, a igreja. Desse ponto de vista é licito dizer que a fé não é um refúgio para gente sem coragem, mas a dilatação dessa vida, porque a história de fé, desde o inicio, é a história da fraternidade, mesmo que muitas vezes se tenha experimentado conflitos. Essa mesma fé nos ensina ver que em cada pessoa tem uma bênção para mim, que a luz do rosto de Deus me ilumina por meio do rosto do irmão: quer dizer,  a fé afirma a possibilidade do perdão, que necessita muitas vezes de tempo, de fadiga, de paciência e de empenho. Como organismo vivo, a comunidade dos crentes é iluminada pela própria crença, pois a fé ilumina o viver social.
Mas somos cientes que falar da fé muitas vezes é falar de provas dolorosas, porque o cristão sabe que o sofrimento não pode ser eliminado, mas pode receber um sentido, pode se tornar ato de amor, entrega nas mãos de Deus que não nos abandona; e de outro modo, a luz da fé não nos deixa esquecer os sofrimentos do mundo. Sabemos que a fé não é luz que dissipa todas as nossas trevas, mas lâmpada que guia na noite os nossos passos e isto basta para o caminho, quero apenas dizer que o sofrimento nos recorda que o serviço da fé ao bem comum é sempre serviço de esperança, que olha além do horizonte, sabendo que somente de Deus, do futuro que que nasce de Jesus ressuscitado, pode encontrar fundamento sólido e durador na nossa sociedade.
Cabe-nos nesse momento uma pergunta que atravessa toda a nossa existência de crentes. Por que crer? O tempo que vivemos revela, juntamente com as maravilhas nas novas conquistas, um difundido sentido de crise, cuja raiz se aloja no terreno empobrecido de uma grave aridez de ordem cultural, mas o dinamismo da fé nos ajuda a ter confiança e visão positiva do futuro. A fé não é um analgésico que nos preserva dos males, mas essa fé em Cristo constitui uma referência de estabilização e de esperança para os cristãos e, por meio desses, para o mundo inteiro. A fé, de fato, é uma rocha forte na qual se pode livremente aderir e sobre a qual se pode construir serenamente a existência. Quando o homem reconhece Deus e se confia a Ele percebe em si uma consistência que vem não somente de suas forças. Tudo isso porque o verdadeiro crente descobre que não vive mais sozinho: sente que Cristo é o seu novo principio vital, daqui a sua estabilidade e a sua coragem para viver no mundo.
Os tesouros da nossa fé, os santos e mártires, chamam-nos a entrar nesse mar profundo da fé depositar nosso coração no único bem que nos leva à eternidade, Cristo Jesus. Disso se infere que os mártires da fé, de ontem e de hoje, são aqueles que entenderam que “quem ama a sua vida a perde e quem a odeia neste mundo a conservará para a vida eterna” (Jo 12,25). O mundo contemporâneo rejeita e despreza essas palavras de Cristo, fazendo do amor por si mesmo o critério supremo da existência. Mas as testemunhas da fé nos falam com seu exemplo que não consideraram o próprio bem-estar, a própria sobrevivência como valores maiores que a fidelidade ao Evangelho. E, na sua fraqueza, deixam manifestar a força de Deus, se opondo com extrema resistência ao mal. Na sua fragilidade, é refletida a força da fé e da graça do Senhor. Pois o cristão sabe que ao se decidir por seguir a Cristo não optou por um caminho fácil, mas pelo caminho certo. Ele tem consciência de que no mundo teremos aflições de todos os tipos, “mas coragem porque – diz Cristo – eu venci o mundo!”(Jo 16, 31). Somos chamados a trilhar esse mesmo caminho. Pois os mártires da fé são os verdadeiros campeões, são aqueles que chegaram ao pódio, levantaram a palma da vitória e alcançaram a coroa incorruptível, e experimentaram em suas próprias vidas que a “vitória que vence o mundo é a nossa fé! (cf. I Jo 5, 4).


PARA REFLETIR
1. O que significa para a Igreja a vida de um mártir?
2. Quais são os mártires do nosso tempo?
3. Você conhece alguém que vive o martírio diário com generosidade?


BIBLIOGRAFIA
LUMEM FIDEI, Papa Francisco, 2013.
PORTA FIDEI, Bento XVI, 2011.
CCC, Catecismo da Igreja Catolica, 2005.
Biblia Sagrada, Paulus, 1997. 







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