Morte e mortes

Morte e mortes



Chegando o dia da comemoração do fiéis defuntos me sinto tentado a fazer uma reflexão sobre a morte, ou melhor dizendo, sobre as mortes.
Partimos de algumas afirmações: o modo de ver a morte para cético  se aproxima muito da dimensão realista:  “O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela” (Fernando Pessoa). A morte é uma constatação fenomenológica, ela chegará mais cedo ou mais tarde, com uma desculpa ou outra, mas sempre chega, o importante é viver o presente com intensidade e com veracidade e não dá tanto peso à morte e às suas consequências. A morte faz parte da nossa natureza caduca, ela é o fim da permanência no tempo e no espaço.
Para um cínico, a morte é uma ironia que se deve dar pouca importância: “Para quê preocuparmo-nos com a morte? A vida tem tantos problemas que temos de resolver primeiro” (Confúcio ),  ou  ainda, “A morte não é nada para nós, pois, quando existimos, não existe a morte, e quando existe a morte, não existimos mais” (Epicuro ). Ela é inevitável e passar os dias pensando ou se paralisando por medo dela não resolve, mas impede ainda de viver de maneira generosa e integrada. A morte é conclusão de uma vida no mundo.
Para um realista, concebe-se a vida como uma passagem a ser registrada: “Os covardes morrem várias vezes antes da sua morte, mas o homem corajoso experimenta a morte apenas uma vez” (William Shakespeare ). A morte deve ser encarada, assumida e canalizada, não permitindo assim que a sua incidência provoque fragmentação na busca da própria realização.
Para o ateu a morte é um absurdo, mas é um encontro que não se pode fugir: “Temer o amor é temer a vida e os que temem a vida já estão meio mortos” (Bertrand Russell ) e ainda “Nunca se é homem enquanto se não encontra alguma coisa pela qual se estaria disposto a morrer” (Jean-Paul Sartre). A morte se coloca no horizonte como o propósito da mesma existência, isto é, a morte é a razão pela qual se existe, pois a vida não tem uma razão, tudo não passa de uma ilusão e querer justificar a sua realidade é dar margem à barbaridade.
Para um crente, especialmente um cristão, a morte é o inicio de uma nova realidade: “Não morro, entro n avida” (Teresa de Liseux).  A morte para quem acredita não é o fim e nem o objetivo da vida, é a ponte que se deve atravessar para se chegar à verdadeira vida. A vida eterna. Para quem tem fé na ressurreição, a morte é resultado de uma vida não vivida justamente, castigo pela desobediência e que encontra em Jesus Cristo a sua remissão, ou seja, n’Ele a morte perde a sua força e o seu valor, pois Ele se coloca como possibilidade da vida que não passa, da vida verdadeira, da vida em Deus: “ Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14, 6). Jesus promete a vida, a eternidade a partir da crença da sua filiação divina, quer dizer, Jesus é o passaporte para o Reino, Ele se propõe como sentido e como realização da esperança, mas também como resposta aos desejos mais profundos da pessoa e como possibilidade e garantia de eternidade: “Eu Sou a ressurreição e a vida, todo aquele que crê em mim, mesmo que morra, viverá; e todo o que vive e crê em mim, não morrerá eternamente. Tu crês nisso?” (Jo 11, 25-26).
Nesses dias que comemoramos os fiéis defuntos, os nossos irmãos falecidos, cabe-nos a pergunta, isto é, como lidamos com a questão da morte e como buscamos superar o seu medo. Não basta esperar a vida eterna, faz-se necessário viver a vida presente, sem fechar a possibilidade de entrar na vida de Cristo. O que temos garantido é o tempo que se chama hoje e quando o vivemos com generosidade e sinceridade, abrimos uma porta para a eternidade. Jesus se coloca como ponte para esse horizonte que vai além do dado, do constatado e cabe a cada um de nós acreditar em suas palavras e deixar que ele ilumine com sua presença a própria existência ou viver a morte como o fim de tudo ou ainda estar na incerteza do que seja a vida e do que seja a morte.  
Dela não escapamos! Não podemos querer nos enganar, refugiando na vida eterna e nem descartar sua possibilidade. Jesus é a alternativa para um sentido à vida e à morte, acreditando n’Ele e nas suas promessas se tem a chance de viver a vida em plenitude, entretanto não podemos nos eximir de enfrentar a vida e a morte com as suas belezas, dramaticidades e possibilidades, isto é, vivendo a fadiga do cotidiano com o heroísmo de quem não espera nada e nem ninguém, mas não se fecha aos raios novos que o sol pode fazer debruçar sobre cada alma despretensiosa e capaz de acolher o convite de ir além do que já se te e se conhece: “Desconfie do destino e acredite em você. Gaste mais horas realizando que sonhando, fazendo que planejando, vivendo que esperando... Porque, embora quem quase morre esteja vivo, quem quase vive, já morreu...” (Sarah Westphal ).
Fica o convite: “ Vinde a mim todos que estejam cansados e eu os aliviarei” e cada qual escolhe que resposta quer tributar e onde coloca a própria esperança. E em relação aos que já partiram? Não os esqueçamos, façamos memória dos momentos bonitos vividos juntos. Oremos pela paz e pelo repouso de seus espíritos e os entreguemos nas mãos de quem pode vencer a morte



P. Jorge Ribeiro

DEUS NAO ESTA' MORTO

Deus não está morto!


Análise do filme que pretende colocar em voga a questão de Deus e da sua existência, assim como da possibilidade de se fazer uma demonstração disso.

Ficha técnica:
1.     God's Not Dead é um filme de drama cristão de 2014, dirigido por Harold Cronk e estrelado por Kevin Sorbo, Shane Harper, David A. R. White e Dean Cain ( Wikipédia).
2.      
3.     Data de lançamento21 de março de 2014 (EUA)
4.     DireçãoHarold Cronk
5.     Duração113 minutos
6.     Lançamento em DVD5 de agosto de 2014 (EUA)

Enredo \ sinopse:
Antes de vermos a síntese do filme e de analisarmos a sua coerência, como filme, começamos por perguntar: até onde você é capaz de ir para provar sua fé?
O fato é que em seu primeiro dia de Universidade, o estudante Josh (Shane Harper) terá sua fé desafiada diante de todos os seus colegas na aula de Filosofia. O pretencioso professor Radisson (Kevin Sorbo) diz não querer perder tempo com tolices e orienta seus alunos, categoricamente, a negarem a existência de Deus, assinando um papel com apenas três palavras: Deus está morto!
Assim, Josh encontra-se dividido ao ter de escolher entre sua crença e seu futuro. Angustiado e nervoso, ele não cede às pressões, provocando a ira do professor e não somente dele. Agora, Josh terá de defender a existência de Deus para toda a classe (em três lições). Sem muito apoio, ele questiona se, de fato, pode lutar por aquilo que acredita (Cfr. www.gracafilmes.com.br).


Análise crítica:
O filme aborda o tema religioso, sobre a existência de Deus e a possibilidade de sua demonstração racional. O filme joga com duas visões excludentes, ou seja, de um crente que tenta justificar sua fé e de um ateu militante, que nega a possibilidade de Deus, sem querer confrontar suas ideias.
O filme se mostra pretencioso desde um início e faz uma caricatura  dos personagens, isto é, como se o ateu fosse insensível e sem razão e os crentes  fossem inocentes; entre os dois personagens principais, o argumento é de matriz filo-teológica, quer dizer, de uma teodiceia que se fortifica por meio de aparatos estreitamente religiosos.
Ao derredor desses dois, professor e aluno, faz-se desfilar uma gama de sujeitos que complementam a trama e que, parecem colocados para justificar as razoes fideístas. Conflitos morais, religiosos e de sofrimentos recheiam as cenas paralelas. As duas personagens centrais entram em conflito ou em comunicação com todos os outros que são inseridos na trama e, de um modo ou de outro estão entrelaçados. 
O filme mostra, ao meu ver, tanto a pretensão de um como do outro, um ateu, que por causas pessoas prefere não colocar a hipótese de Deus, principalmente de um Deus bom e a pretensão de um aluno que pensa poder provar as razoes de sua crença.  É verdade que o filme deixa entrever que a fé seja uma adesão pessoal e que depende, em última instância, da abertura que cada um tem a essa possibilidade. Mas também é verdade que o filme assume um tom apologista, como se a visão cristã fosse a correta, onde os não crentes aparecem ambiciosos e fúteis e os crentes pessoas assentadas e alegres.  Soa muito mercantilismo da fé e de um modo de viver a fé como atitude vitoriosa em relação aos problemas da existência humana e social.
É um filme válido, mas também deixa em aberto algumas questões: se os ateus são todos insensíveis? Qual a distinção entre a vontade de Deus e o egoísmo da mesma pessoa? Que os cristãos vivem numa atmosfera quase fora da realidade? A fé torna as coisas mais fáceis e tem sempre uma dose positiva em confronto dos sofrimentos e da maldade?


João Calvino sobre a Providência divina contra algumas objeções

Acusação de estoicismo lançada sobre a doutrina da predestinação


Os que querem tornar esta doutrina odiosa a caluniam dizendo que ela se identifica com o paradoxo dos estoicos, segundo o qual todas as coisas sucedem necessária ou inevitavelmente. O que é fortemente repudiado por Agostinho, entre outros. Quanto a nós (conquanto não nos agrade debater palavras), não aceitamos o vocábulo empregado pelos estoicos, qual seja:Fatum. Por isso mesmo, quanto a muitos vocábulos, Paulo nos ensina a fugir das novidades; pois não é que os nossos inimigos mancham, por ódio ao nome [da doutrina], a verdade de Deus com sua acusação? Quanto à referida opinião, é falsa e maldosamente dada como uma objeção a nós. Porque nem sonhamos com uma necessidade ou inevitabilidade mantida na natureza por uma conjunção perpétua de todas as coisas, como faziam os estoicos. Mas nós declaramos Deus o Soberano Senhor e Governador de todas as coisas, e dizemos que desde o princípio, segundo a Sua sabedoria, Ele determinou o que haveria de fazer e então haveria de executar, segundo o Seu poder, tudo quanto havia deliberado. Concluímos, pois, que não somente o céu, a terra e todas as criaturas destituídas de razão, são governadas por Sua providência, mas também os conselhos e os desejos dos homens, e que os governa de modo tal que os conduz ao propósito determinado por Ele. E então? dirá alguém, nada se faz ou acontece por acaso ou por contingência? Respondo que foi muito bem declarado por Basílio quando ele escreveu que Sorte (Fortuna) e Acaso são palavras pagãs, cujo significado não deve entrar num coração fiel. Porque, se toda prosperidade é bênção de Deus, e toda adversidade é Sua maldição, não resta nenhum lugar à sorte em tudo quando sobrevenha aos homens. 

Reforço do argumento para consolo

Todavia, visto que a nossa debilidade sucumbe ante a altitude da providência de Deus, introduzirei aqui uma distinção para nosso consolo. Diremos então que, conquanto todas as coisas sejam feitas e aconteçam pela ordenação de Deus, sucede, porém, que para nós elas são fortuitas ou casuais. Não é que julgamos que a Fortuna domine sobre os homens, elevando e rebaixando todas as coisas com arrogante audácia (porque esse devaneio deve estar longe do coração cristão). 
O fato é que, como as coisas que acontecem, a ordem, a razão, o fim e a necessidade, na maioria das vezes estão ocultas no conselho de Deus e não podem ser entendidas pela opinião humana, as coisas que reconhecemos que certamente provêm da vontade de Deus são, para nós, pouco menos que casuais. Porque elas não mostram outra aparência, quando consideradas em sua natureza, ou quando avaliadas segundo o nosso juízo e conhecimento. Como exemplo, consideremos o caso de um negociante que, tendo entrado numa floresta em boa companhia, perde-se do grupo e acaba caindo nas mãos de bandidos, e estes lhe cortam a garganta. Sua morte não somente havia sido prevista por Deus, mas também tinha sido decretada segundo a Sua vontade. Porquanto, não somente se afirma que Ele previu tudo quanto abrange a vida de cada um, mas também declara: "Tu [Senhor] ao homem puseste limites além dos quais não passará." (Jó 14:5). Todavia, tendo em vista o que a nossa concepção é capaz de apreender, todas as coisas parecem casuais nesse tipo de morte. Que é que um cristão pensará aqui? Certamente julgará que é casual em sua natureza, mas não duvidará que a providência de Deus tenha presidido tudo, conduzindo a sorte a Seu objetivo. O mesmo argumento serve com relação aos eventos futuros: como todas as coisas vindouras são incertas para nós, também nisso nos mantemos em suspense, como se elas pudessem cair numa ou noutra sorte. Isto, porém, permanece resolvido firmemente em nosso coração: Nada acontecerá que Deus não tenha ordenado.

Cuidado com as invencionices dos que falseiam a verdade!

Portanto, ao considerarmos a providência de Deus, devemos cuidar de não cair na multidão de fantasias de tantos tipos de tolos, os quais ficam a tagarelar de tal modo sobre isso que acabam confundindo céus e terra [em sua negação da doutrina da predestinação. Como no seguinte pensamento]: “Se Deus tivesse marcado a hora da nossa morte, não poderíamos escapar. Então seria inútil nos empenharmos em proteger-nos”. Assim, há os que não ousam pôr-se a caminho quando ouvem dizer que ali há perigo, temendo o assalto de bandidos; outros correm atrás de remédios e de médicos, em busca de ajuda para as suas doenças; outros se abstêm de carne gorda para prevenir-se; outros têm medo de morar em casas ruinosas; e todos em geral procuram meios para levar a cabo as suas intenções. 
Todas estas coisas são remédios fúteis a que recorrem para corrigir a vontade de Deus; ou então não é por Sua vontade e por Sua ordenação que todas as coisas acontecem. Porque estas coisas são incompatíveis: Dizer que a vida e a morte, a saúde e a doença, a paz e a guerra, as riquezas e a pobreza, vêm de Deus, e dizer que os homens, por sua habilidade, ou as evitam ou as obtêm, conforme as detestam ou as deseja.

Para que orar?

Acresce que aqueles homens dizem que as orações dos crentes não somente são supérfluas mas também são más, porquanto por elas se pede que Deus faça ou dê o que deliberou eternamente. Em suma, eles suprimem toda deliberação que se tome com relação a coisas futuras como repugnantes à providência de Deus, a qual, sem nos convocar para conselho, determinou uma vez por todas aquilo que ela quer que seja feito. Além disso, tudo o que acontece eles imputam de tal modo à providência de Deus que não tomam em consideração o homem, que sempre terá feito algo daquilo do que se trata. Se algum malfeitor mata um homem de bem, eles dizem que esse homem executou o conselho de Deus. Se alguém roubou ou adulterou, dizem eles que tal homem é ministro da providência de Deus, uma vez que fez o que Deus tinha previsto. Se o filho deixa morrer o pai sem lhe prestar socorro, a explicação dada é que ele não poderia resistir a Deus, que assim tinha ordenado. Dessa forma eles transformam todas as más ações em virtudes, alegando que elas prestam serviço à ordenação de Deus.

Quanto às coisas futuras...

Quanto às coisas futuras, Salomão facilmente concede à providência de Deus as decisões que se tomam. Porque, assim como ele zomba do atrevimento daqueles que, sem levar Deus em conta, audaciosamente empreendem tudo quanto vem a eles em sua fantasia, como se não fossem regidos por Sua mão, assim também em certa passagem ele diz: “O coração do homem traça o seu caminho, mas o Senhor lhe dirige os passos”. (Provérbios 16:9) Com isso ele quer dizer que o decreto eterno de Deus não nos impede de agir sob a Sua boa vontade e que controlemos as coisas que nos dizem respeito. A razão é clara e manifesta. Porque Aquele que limitou a nossa vida, confiou-nos também a solicitude por ela, o cuidado dela; deu-nos os meios para preservá-la; e nos habilitou a prever os perigos, para que não nos surpreendam, dando-nos ao contrário remédios para capacitar-nos a preveni-los. 

Agora se vê qual é o nosso dever. Se o Senhor nos dá a nossa vida para que dela cuidemos, que a preservemos; se nos dá os meios para fazê-lo, que os utilizemos; se Ele nos mostra os perigos, que não nos atiremos loucamente e sem propósito; se Ele nos oferece remédios, que não os menosprezemos.

Mas, dirá alguém, nenhum perigo nos fará mal, se não tiver sido ordenado que faça. E, se assim é, pode-se ir ao encontro dele com qualquer remédio ou recurso. Mas, por outro lado, que acontecerá se os perigos não forem insuperáveis, visto que o Senhor nos designou os remédios pra sobrepujá-los?
Considere que acordo há entre o seu argumento e a ordem da providência divina. Você infere que não devemos guardar-nos dos perigos porque podemos escapar sem nos guardarmos, desde que não sejam insuperáveis; mas também que, por outro lado, o Senhor lhe ordena que se guarde, porque quer que você escape. Os fulanos mentalmente transtornados que assim argumentam não consideram o que se vê com os olhos: que a habilidade de guiar-nos e guardar-nos foi inspirada aos homens por Deus. Com que finalidade? Para com isso poderem servir à providência divina preservando a sua vida. Como também, por sua negligência e desconsideração, eles recebem as misérias que Ele queira impor-lhes. Por que será então que, na mesma situação em que o homem prudente, que ordena e dirige as coisas que lhes dizem respeito, desvia de si o mal que está perto, e o tolo, por sua temeridade, perece? Que outra coisa pode ser, senão que a insensatez e a prudência são instrumentos da dispensação de Deus, de um lado e do outro? Por isso o Senhor quis que todas as coisas futuras nos estejam ocultas, a fim de prosseguirmos em nosso caminho não sabendo o que irá acontecer; e que não deixemos de usar os remédios ou recursos que Ele nos dá para enfrentarmos os perigos até que alcancemos o objetivo proposto, ou que sejamos sobrepujados por eles.

Quanto às coisas passadas...

Quanto às coisas já acontecidas e passadas, esses homens cobertos de fantasias consideram mal e perversamente a providência de Deus. Nós dizemos que todas as coisas dependem da Providência como de seu fundamento; e, portanto, não se pratica nem latrocínio, nem adultério, nem homicídio que a vontade de Deus não interfira. Sobre isso os tais perguntam: Sendo assim, por que deverá ser punido o ladrão que puniu aquele que Deus quis que fosse castigado com a pobreza? Por que deverá ser punido o assassino que matou aquele a cuja vida Deus pôs termo? Resumindo, se semelhantes pessoas servem à vontade de Deus, por que deverão ser punidas?

Eu, porém, nego que elas com isso estão servindo à vontade de Deus. Porque não diremos que alguém que é movido por um mau coração se dedica a servir a Deus, visto que ele tão-somente quer comprazer sua malvada cupidez. Aquiesce e obedece a Deus aquele que, aprendendo a Sua vontade, vai aonde esta o chama. Agora, onde é que Deus nos ensina a Sua vontade, senão em Sua Palavra? Portanto, em tudo quanto nos cabe fazer, devemos contemplar a vontade de Deus tal qual nos é revelada em Sua Palavra. Deus só exigea de nós o que Ele ordena. Não fazer nada contra o Seu preceito não é obediência, mas, antes obstinação e transgressão.

Pois não é que os tais replicam que não ofenderíamos a Deus se Ele não quisesse? Reconheço. Mas, fazemos isso a fim de agradá-lo? Ora, Ele não nos manda praticar o mal; mas nós o praticamos sem pensar no fato de que Ele não nos manda fazer isso. O fato é que, estando nós tão alterados pela fúria da nossa intemperança que com deliberado propósito nos empenhamos em praticar transgressão, dessa maneira servimos à Sua justa ordenação, ao praticarmos o mal; porque, pela grandeza infinita da Sua sabedoria, Ele de maneira justa e reta se serve de instrumentos maus para fazer o bem.

A absurdidade das objeções

Mas vejamos bem quão absurda é a argumentação dos nossos opositores. Eles querem que os crimes permaneçam impunes e que estejam livres os que os praticam, uma vez que não são cometidos independentemente da ordenação de Deus. Digo mais, que os ladrões, as meretrizes e outros malfeitores são instrumentos da providência de Deus, dos quais Deus se utiliza para executar os juízos decretados por Ele. Mas eu nego que, por isso, possam pretender alguma escusa. Então quê? Envolverão eles a Deus na mesma iniquidade com eles? Ou vão querer cobrir a sua perversidade com a justiça divina? Não podem fazer nem uma coisa nem outra; e a sua própria consciência de tal modo os acusa que eles não podem extirpar ou sanar o seu mal. Acusar a Deus eles não podem, visto que encontram em si mesmos toda a maldade, e em Deus nada encontram, senão um uso bom e legítimo dos males que eles praticam.

No entanto, Deus trabalha por meio deles, dirá alguém. E de onde vem o odor da podridão de um cadáver exposto? Qualquer pessoa pode ver claramente que vem dos raios solares. E, todavia, não é por isso que se vai dizer que os raios do sol têm mau cheiro. Assim, visto que a substância e a culpa do mal subsistem no homem mau, por que Deus eliminaria toda e qualquer mácula e sujidade, se a usa conforme a Sua vontade? Portanto, acabemos com essa petulância animalesca, a qual pode ladrar de longe contra a justiça de Deus, mas não a pode tocar.

Boa norma para se avaliar a providência divina

Contudo, não se pode refutar melhor nem mais rápido esses absurdos do que demonstrando qual é a regra que devemos ter para julgar e considerar bem a providência de Deus. Por isso, visto que o coração do cristão já tem como coisa esclarecida e resolvida que nada acontece por acaso, mas que todas as coisas são feitas pela providência divina ou por meio dela, ele sempre considerará a Deus como a causa principal de tudo o que se faz; entretanto, não deixará de ter em conta as causas inferiores ou secundárias, em seus respectivos graus. Além disso, o cristão não duvidará de que a providência de Deus vela por sua preservação e não permitirá que lhe aconteça nada que não seja para seu benefício e para a sua salvação. Agora, tendo-se em vista que Deus cuida primeiro do homem e, em segundo lugar, das demais criaturas [sem omitir aquele ou estas], o cristão afirmará que a providência divina impera sobre todos e sobre tudo.

No que se refere aos homens, bons ou maus, ele reconhecerá que os seus conselhos, suas vontades e suas forças, seus poderes e seus empreendimentos, estão sob a mão de Deus; tanto que a Ele cabe dobrá-los para onde Lhe apraz e reprimi-los toda vez que bem Lhe pareça. Há muitas promessas evidentes que testificam que a providência de Deus cuida dos crentes e vigia os seus passos para manter e assegurar a sua salvação. Como quando a Escritura diz: “Confia os teus cuidados ao Senhor, e ele te susterá; jamais permitirá que o justo seja abalado” (Salmo 55:22). E também: “Os olhos do Senhor repousam sobre os justos, e os seus ouvidos estão abertos às suas súplicas” (I Pedro 3:12). E ainda:“Quem habita no esconderijo do Altíssimo será sustentado pela sua proteção” (Salmo 91:1). E mais: “Aquele que tocar em vós toca na menina do seu olho [do olho do Senhor]” (Zacarias 2:8). E também: “Deus lhe põe a salvação por muros e baluartes” (Isaías 26:2) [para a defesa do Seu povo]. E finalmente: “Ainda quando a mãe esquecesse seus filhos, eu não me esquecerei de ti”. (Isaías 49:15)

Sucede mesmo que o principal objetivo das narrativas da Bíblia é mostrar que Deus cuida tão solicitamente dos Seus servos que não deixará que tropecem nalguma pedra. Embora com razão eu acima tenha reprovado a opinião daqueles que imaginam uma providência universal de Deus, a qual não desce para dar atenção especial a nenhuma criatura, devemos, porém, acima de tudo mais, reconhecer esta solicitude especial de Deus para conosco. Por essa razão Cristo, após haver dito que “nenhum deles [pardais] cairá em terra sem o consentimento de vosso Pai” (Mateus 10:29,31), aplica incontinenti essa sentença ao nosso caso, no sentido de que devemos estar certos de que, como para Deus somos mais preciosos que os passarinhos, Ele cuida de nós mais atentamente do que deles. Também disse o Senhor que tal é o cuidado de Deus por nós que não se perderá nem um só fio do nosso cabelo sem a Sua permissão (Lucas 21:18). Que é que nós queremos mais, se nem um só fio de cabelo pode cair sem que Deus o queira?

Portanto, o servo de Deus, confirmado e fortalecido por todas essas promessas e pelos exemplos correspondentes, junta a eles os testemunhos nos quais se declara que todos os homens estão sob o poder de Deus, seja que Ele induza o coração deles a nos amar, seja que reprima a sua maldade, para que esta não nos prejudique.
Porque foi o Senhor que deu graça a Seu povo, não somente para com os que distintamente lhe foram amistosos, mas também para com os egípcios (Êxodo 1). Quanto ao furor dos nossos inimigos, Ele sabe muito bem como detê-los ou destruí-los de diversas maneiras. Às vezes Ele fecha o seu entendimento, para que não possam tomar conselho ou formular bom plano. Foi o que fez com Acabe, enviando-lhe o Diabo, para lhe profetizar mentira pela boca de todos os profetas, a fim de enganá-lo (I Reis 22:5,6). Como também fez com Roboão, cegando-o por meio do estulto conselho dos jovens para despojá-lo do seu reino (I Reis 12:1-15). Por vezes, dando aos homens entendimento para que vejam e entendam o que é válido e benéfico, de tal modo Deus abate o coração deles e os enche de espanto que não se atrevem a realizara o que tinham planejado. Às vezes, permitindo-lhes que se esforcem para executar o que a sua insanidade os induz a fazer, Deus se antecipa a seu ímpeto e não permite que eles levem a cabo a sua intenção. Desse modo Ele dissipou previamente o conselho de Aitofel, que era pernicioso para Davi (2 Samuel 17:1-23). Dessa maneira Deus cuida de governar e conduzir todas as criaturas com vistas à salvação dos Seus. Faz isso até com o Diabo, o qual vemos que não se atreveu a atentar contra Jó sem o Seu consentimento e a Sua ordem.

Pra se pensar ....

Desespero anunciado

Desespero anunciado Para que essa agonia exorbitante? Parece que tudo vai se esvair O que se deve fazer? Viver recluso na pr...