Condição do homem
Pe. Jorge Ribeiro
Quem é o homem? Do
que é capaz e do que não é capaz? Não é pergunta retorica. É uma pergunta
existencial. Qual o lugar do ser humano no mundo? Não se trata de descrever as
partes ou funções, limites e qualidades e nem também as misérias e
possibilidades, mas do que constituem a natureza movediça e inconstante do ser
humano, capaz de gestos extraordinários e exuberantes, mas também de se debruçar
perante as migalhas do vazio.
Quem sou eu então?
Qual a minha essência? Como posso me compreender? Ler a si mesmo e perceber as
nuanças da alma é a tarefa mais difícil (Montaigne). Esse emaranhado de
fragmentos, sentimentos, desejos, retrações, como isso se explica e como se
justifica? Eu mesmo sou estranho a mim e muitas vezes não me reconheço. A que é
devido essa complexidade? Por que a natureza humana não é fixa e contínua? Essa
reticência que desenha a figura humana é fruto das influências e das civilizações ou é inerente a todo ser
humano, independentemente das relações de tempo e de cultura?
Essa incerteza que
a natureza impõe ao ser humano, exige dele continuada renovação e adequação ,e
por isso mesmo, tantas vezes se sente perdido e deslocado no mundo. Qual é
então a condição do homem no mundo? Não é simplesmente um animal e não é
tampouco um ser espiritual. Não se identifica com os outros seres e não
encontra seu lugar. Tem algo que especifica a raça humana e sua situação no
cosmo? Nunca como nunca esse ser humano foi problema a si mesmo (M. Scheler). O
que a autoconsciência do homem quer determinar com sua situação de ser
inadequado? Talvez por isso B. Pascal tenha resumido nos seus pensamentos o que
seria o ser humano e a sua pretensão: “o homem não é nem anjo nem animal, e a infelicidade
quer que quem quer se mostrar anjo se mostre animal” (PASCAL, 2005, p. 279.
Laf. 678; Bru. 358).
A pretensão humana
é de ser infinito, mas é um nada. Na sua liberalidade, pela sua capacidade de
pensar e querer, o ser humano, muitas vezes, acha-se absoluto e infinito, capaz
de superar as próprias limitações e barreiras, mas todos nos percebemos
carentes e necessitados, quem é totalmente autônomo e não precisa de ninguém
para viver? Desde os objetos que usamos e as relações que vivenciamos, vem de
outros e ainda mais o futuro, a vida nem sequer temos ideia do que é ou será. Pelo
fato de poder algumas coisas a pessoa se sente importante e grande. Mas o real
é que somente perante o nada que o homem pode se sentir gigante.
Como conciliar o
lugar do homem entre o infinito e o ínfimo? Um ser pendurado entre dois mundos.
Deseja o infinito e abraça o passageiro.
Constrói altas prosopopeias e padece de um resfriado. Que condição miserável. O
homem é um caniço rachado. Pensante, mas frágil (Pascal). Pois para Pascal “a
grandeza do homem é grande por ele conhecer-se miserável […]. É então ser
miserável conhecer-se miserável, mas é ser grande conhecer que se é miserável”
(Pensamentos, 394). O homem é grande por entender o que se passa e reflete
sobre sua mesma condição, mas é esmagado pelas múltiplas circunstâncias que o
envolve, por isso é fraco.
Como entender esse
misto de absoluto e de nulidade num mesmo ser? A natureza humana é
contraditória em si mesma, mas é sobretudo complexa, nela não há uma única interpretação ou percepção, ela é
multiforme e movediça. Essa heterodoxia da natureza humana não é um defeito ou
uma imperfeição, mas simplesmente a sua peculiaridade. A natureza humana é
assim oscilante e descontinua, por isso se aborrece e se desfigura com a
rigidez e a mesmice. Essa fragilidade é também a força da raça humana, pois lhe
habilita para se adaptar em diferentes realidades.
A fragilidade e a
potencialidade da pessoa humana foi maravilhosamente descrita por B. Pascal.
Ele afirma que: O homem não é senão um caniço pensante, o mais fraco na
natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que o universo inteiro se
arme para esmagá-lo; um vapor, uma gota de água basta para matá-lo. Mas, ainda
que o universo o esmague, o homem seria mais nobre do que aquilo que o mata,
pois, ele sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre ele. O universo
de nada sabe. Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. É daí que
temos de nos elevar, e não do espaço e da duração que não conseguimos
preencher. Trabalhamos, pois, para pensar bem: eis aí o princípio da moral.
(PASCAL, 2005, p. 86. Laf. 200; Bru. 347).
O pensador francês quer advertir que existe uma
desproporção entre o que o homem é e o que ele deseja ou pretende ser. O ser
humano é feito de desejos, de quereres, de projeções, de sonhos e, por isso
mesmo, capaz de se tornar todas as coisas, mas ao mesmo tempo se percebe
limitado, impotente e incapaz perante a si mesmo e a outras perspectivas. O
homem é grande em si, mas é miserável sem Deus. Acaso alguém pode escolher seu
próprio nascimento? Ou pode acrescentar um dia de sua vida?
Por essas e outras
que se é corriqueiro dizer que homem é capaz de tudo, inclusive de nada. Das
mais nobres causas e das mais terríveis baixezas. Isso significa que “a duplicidade do homem é
tão visível que alguns chegaram a pensar que tínhamos duas almas. Um sujeito
simples lhes parece, com efeito, incapaz de tais e tão súbitas verdades, de uma
presunção desmedida a um horrível abatimento do coração”. (PASCAL, 2005, p.
270. Laf. 629; Bru. 417). Essa duplicidade pode ser vista em muitos dados, como
por exemplo, bom e mau, corpo e espírito, objeto e sujeito, grandeza e miséria.
Não significa várias pessoas, mas uma pessoa multifacetada, o que não significa
fragmentada ou desconstituída, mas um todo formado por diversas partes,
integrantes e comunicantes entre si e em tantas vezes independentes.
A instabilidade e
a incoerência da natureza humana deixa a pessoa numa situação de perplexidade,
pois suspenso entre realidades antagônicas, é ele mesmo que deve servir de
instrumento integrador e colaborar para que o humano seja humanizado e não
angelizado ou bestializado, e com Pascal parece correto se questionar: “que tipo de quimera é
então o homem? Que novidade, que monstro, que caos, que fonte de contradições,
que prodígio? Juiz de todas as coisas, verme imbecil, depositário da verdade,
cloaca de incerteza e de erro, glória e rebotalho do universo”. (Pensamentos,
434). Essas duplicidades e pluralidade dentro de uma mesma pessoa não deve ser
motivo de desaprovação ou de condenação, mas estimulo para a concretização de
convivência maleável da pessoa consigo mesma e com o mundo que a cerca.
Cabe uma pergunta perante
essa constatação que a pessoa humana seja uma pergunta aberta: Como desenvolver
a humanidade integral do homem, quando ele é em si mesmo paradoxal e distraído?
O reconhecimento de que se é instável e incerto demonstra a miserável grandeza
do homem. A consciência trágica da própria condição é o caminho para a salvação
da raça humana: nem robôs, nem anjos e nem bestas, mas simplesmente humano,
quiçá mais humano do que apenas ter uma natureza aberta e ser um agente de
tantas possibilidades.