DA MORALIDADE

Da moralidade



Poderíamos ter moralidade sem um senso de empatia? Em outras palavras, teríamos comportamentos morais sem a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro? Se tirarmos da equação a vontade do agente moral, provavelmente sim. Afinal de contas, não é porque comportamentos tenham motivações individualistas que suas consequências não possam ter resultados bons para a comunidade, ou que não sejam moralmente adequados.
Mas o que queremos saber é se, sem qualquer senso de existência dos sentimentos dos outros ― como no caso de crianças jovens, que ainda não o desenvolveram ou que ainda não têm nos estágios comparáveis ao dos adultos ―, teríamos ferramentas suficientes para saber se tal ou qual atitude é ou deixa de ser moralmente válida ou aceita. A resposta, provavelmente, é não. É assim que vemos psicopatas ou sociopatas: como pessoas que nunca tiveram ou que perderam a capacidade de entender que seu comportamento causa sofrimento nos outros, apesar do óbvio prazer que lhes proporciona.
Com o avanço dos estudos do cérebro, hoje sabemos que grande parte do que consideramos empatia tem a ver com o nível de um hormônio chamado ocitocina. E o mais interessante é que a sua função primordial não é essa. Originalmente, a ocitocina é liberada, nas mulheres, durante as contrações uterinas do parto e durante a ejeção de leite nos anos de amamentação; já nos homens, é principalmente liberada durante o contato físico com sua prole.
Em síntese, é direcionada aos filhos, mas também tem importância em parceiros de longa data. Trata-se, portanto, de um belo recurso biológico para que cuidemos das relações duradouras e da descendência que delas resulta. Mas não é novidade que temos afeição especial pelos familiares mais próximos ― é uma estratégia que nos garante bons resultados, dada a reciprocidade e a segurança resultantes. Nesse círculo mais íntimo, é possível ver as maiores atitudes consideradas altruístas, bem como a proteção familiar que beira o nepotismo.
A empatia seria, então, a expansão desse carinho dedicado somente aos familiares próximos para outros membros das aglomerações sociais. Por isso, aliás, é que estudiosos contemporâneos tendem a dizer que os conflitos mundiais tendem a diminuir conforme expandimos nosso círculo afetivo, fato acelerado pelas relações de comércio da economia globalizada e pela crescente revolução das comunicações, que contribuem para que tenhamos melhores informações sobre os outros, tirando-os da lista de inimigos e de revolta preconceituosa. Hoje, podemos ter, com relativa facilidade, contatos e negócios com pessoas dos mais diversos lugares do planeta.
Ao isolarmos a molécula de ocitocina, poderíamos, em tese, usá-la para termos resultados mais empáticos em todas as pessoas. Bastaria encontrar alguma forma de inseri-la em nosso organismo sem maiores efeitos colaterais. Como consequência, seríamos todos mais empáticos e tenderíamos a escolhas moralmente mais adequadas, por considerarmos os outros como variáveis importantes para a resolução de dilemas. Há, no entanto, desdobramentos desse tratamento que, como qualquer outra inovação médica ou tecnológica, geram problemas filosóficos.
Um dos primeiros poderia ser o uso heterônomo da substância. Poderíamos impor o seu uso ou fazê-lo sem o consentimento do paciente? Afinal, se uma das causas de crimes graves por sociopatas ou psicopatas é a insuficiência de ocitocina, não seria mais fácil medicá-los para que possam conviver normalmente em sociedade? Seria moralmente adequado exigir tal tratamento como parte da pena pelos delitos? Seria aceitável que tivessem as outras penas restritivas diminuídas em face do tratamento? Essas indagações dependem muito da função da pena adotada pela sociedade.
Ainda no Direito, poderíamos pensar nas consequências jurídicas de um tratamento preventivo, e não interventivo. Em outras palavras, seria aceitável que tomássemos doses periódicas do medicamento, como uma vacina? Se sim, seria exigível? Qual seria a punição, em caso de descumprimento? Nesse caso, devemos pesar a liberdade individual e a intervenção estatal nessa liberdade. Como tal, o Estado teria o ônus argumentativo e precisaria justificar esse tipo de medida, demonstrando, além da relação causal entre ela e o resultado pretendido, que ela é a menos gravosa para que os fins sejam satisfeitos.
Grande parte da ojeriza por tais métodos de tratamento vem de nossa programação inata. Somos irremediavelmente essencialistas, no sentido de procurarmos uma essência imutável, inerente às coisas e às pessoas. Logo, se uma pessoa tem propensão à violência, não importa por que tipo de tratamento ela venha a passar — desde sessões de ioga ou de assistência psicológica, até medicamentos e tratamentos hormonais —, sempre seremos céticos com relação à imagem daquela pessoa que outrora ocupara nossas mentes. Não é assim que enxergamos evangélicos convertidos após uma vida inteira de ações pouco louváveis?
É esse tipo de pensamento que desemboca no que veio a ser conhecido como livre-arbítrio. Em parte, mesmo sabendo que não temos tanto controle assim, parece que continuamos a acreditar que as pessoas devem ser responsáveis por seus atos ― e principalmente que devem ser punidas indefinidamente, com penas não raro claramente desproporcionais em tempo ou em violência. Obviamente, o determinismo biológico não é suficiente para que isentemos os indivíduos de seus atos, mas as medidas retribucionistas acabam por exagerar o poder de decisão à disposição, quando da ação ou da omissão.
Certamente, em um sentido puramente utilitarista, nada disso importaria. Mas o sentimento de repulsa pode ser alimentado um pouco mais. Vejamos. Até agora, falamos especificamente de tratamentos farmacológicos, mas há formas, digamos, “naturais” de conseguir ocitocina. A mais simples delas é trocando abraços. Parece simplória, mas o ato banal de afagar outro indivíduo com os seus braços aumenta a produção de ocitocina. Não teremos problemas se o abraço for sincero e despretensioso ― seja lá o que isso queira dizer. No entanto, imaginemos a situação daquelas pessoas que fazem campanha nas ruas, distribuindo abraços gratuitos a estranhos.
Até que ponto nos sentimos bem com aquele gesto? Se realmente nos faz sentir algo bom, é tão bom quanto o carinho dado fora do movimento elaborado? Pensando com nosso íntimo, há alguma forma de resistência à ideia de sairmos à rua e abraçarmos estranhos, ou de sermos abraçados por eles? Sabemos do objetivo da empresa, mas existe algum sentimento de manipulação? Afinal, não estão estimulando um aparelho de recompensa de forma intencional e premeditada? Até que ponto isso é mais natural do que a injeção direta da ocitocina?
Dito isso, é fácil constatar que chegamos a um momento do conhecimento científico no qual temos soluções satisfatórias para comportamentos humanos considerados danosos, mas que não nos sentimos bem ao utilizá-las porque elas nem sempre vão de encontro aos nossos instintos. Por mais que teorias avancem no campo de visão de pena, grande parte da população ainda deseja que criminosos paguem por seus crimes, numa alusão clara à lex talionis. Diferentemente da busca pela ressocialização do apenado, a simples retribuição ainda aparece aplacar melhor a “sede de justiça”, dificilmente distinta da vingança.
Fazer com que todos entendam e aceitem a razoabilidade das novas medidas, passando por cima de ideias arraigadas e consoantes com nossa programação biológica, não parece ser uma opção viável ― ou, ao menos, fácil de conseguir. Nesses casos, devemos impor limites claros aos tipos de pena das quais o Estado poderá dispor contra o indivíduo, para que ele, livre das paixões humanas, possa dar continuidade ao processo civilizatório que tem dado resultados satisfatórios em conter a violência.
Longe de afastar outras causas, tais como as necessidades de uma economia de mercado mundial, ganhamos muito em diminuirmos o número de linchamentos decorrentes da aplicação da vontade imediata de uma turba enfurecida. Assim como ganhamos em esperar comprovações antes de exigirmos a punição imediata daqueles que consideramos delinquentes ou criminosos. E exatamente como ganhamos ao não diferenciar indivíduos, pelos olhos do Estado, de acordo com suas peculiaridades ou das notícias que chegam até nós.
Um mundo em que sejamos obrigados a tratar familiares e estranhos da mesma forma é praticamente inconcebível. Mas um mundo em que não tratemos tais estranhos como inimigos mortais, dignos de desconfiança e desprezo, é completamente factível, desde que usemos os mecanismos biológicos disponíveis em nosso favor, buscando atingir os fins que racionalmente desejamos. Pessoalmente, a escolha entre o equilíbrio da micro e da macroperspectiva é de caráter meramente moral ― e aqui passamos a depender dos níveis de ocitocina.
Tratando isso como deficiência ou qualidades individuais, podemos traçar um limite razoável a ser respeitado por todos. Dessa forma, podemos ter casos em que nossa liberdade irrestrita vá de encontro à boa vida social, e, portanto, deve ser cerceada, segundo benefícios generalizados.
Leituras recomendadas:
BARASH, David P.; LIPTON, Judith Eve. Payback: why we retaliate, redirect aggression, and take revenge. Nova Iorque: Oxford University Press, 2011. [em inglês]
KOGAN, Aleksandr et alA thin-slicing study of the oxytocin receptor (OXTR) gene and the evaluation and expression of the prosocial disposition. Disponível online em: <http://www.psych.utoronto.ca/users/spa/news2/Papers/A thin-slicing study of the oxytocin receptor (OXTR) gene and the evaluation and expression of the prosocial disposition–Kogan et al 2011.pdf>. Último acesso em 30 nov. 2011. [em inglês]
PINKER, Steven. Tabula rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.
PINKER, Steven. The better angels of our nature: why violence has declined. Nova Iorque: Viking, 2011. [em inglês]
STEWART-WILLIAMS, Steve. Darwin, god, and the meaning of life: how evolutionary theory undermines everything you thought you knew. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2010. [em inglês]
VERPLAETSE, Jan et al (org.). The moral brain: essays on the evolutionary and neuroscientific aspects of morality. Nova Iorque: Springer, 2009. [em inglês]

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