Privatização da fé e da vida religiosa ou espiritual
Uma problemática antiga dos estudos de religião diz respeito a se a religião seria, ou não, um fenômeno universalmente humano (homo religiosus). Apenas se pode afirmar que todas as civilizações passadas e atuais das quais se dispõe de documentação confiável apresentaram ou apresentam algum tipo de manifestação religiosa, mas isso não nos permite elaborar conclusões universalistas quanto a sociedades antigas sobre as quais pouco se sabe ou quanto a sociedades futuras (James, 1994).
Não é demais lembrar que os termos religião e religioso, de matriz latina, são estranhos à linguagem das culturas antigas (excluída a romano-latina) e das culturas não européias. E as interpretações que se fizeram do termo, historicamente, são muitas: escrúpulo, consciência, exatidão, lealdade; um estilo de comportamento marcado pela rigidez e precisão. A partir de Agostinho (354-430), enfatiza-se a exortação do homem para Deus, articulando-se religio a religando. Estava aberto o caminho para a idéia de ligação baseada na submissão e no amor entre o homem e Deus. Na atualidade, a idéia mais corrente é a de religare (tendo como fonte o termo latino relegere ou religáre), que não significa, necessariamente, religação com um Deus, mas, sim, com a existência, com o cosmos, com as dimensões invisíveis, com o divino, com o misterioso.
No início do século XX, coloca-se uma problemática básica (em termos do que são a origem e as âncoras do conhecimento) da Ciência da Religião: compreender ou explicar a religião e a religiosidade. Posteriormente, Evans-Pritchard escrevia sobre a atitude dos sociólogos e, em particular, dos antropólogos sociais, diante da fé e da prática religiosa, em sua maior parte, como francamente hostil, anti-religiosa. Seus contemporâneos seriam agnósticos e positivistas, apesar de a Antropologia ter surgido a partir dos estudos comparativos da religião. Segundo o autor, esta era tratada como superstição para a qual era necessária uma explicação científica. A maioria dos antropólogos "[...] sustentariam que a fé religiosa é uma ilusão, um curioso fenômeno que logo será extinto e que poderá ser explicado [...]" (Evans-Pritchard, 1986, p. 11). Afinal, a Antropologia teria sido produto de mentes que, com raras exceções, encaravam a religião como inútil, além do fato de esta ter dificultado o caminho do que era considerado como de regeneração racional da humanidade e do progresso.
De fato, concordando com Evans-Pritchard (ibid., p. 18), as leituras feitas por vários clássicos sobre a religião, no século XIX e no início do século XX (Comte, Durkheim, Marx, Freud, Weber), foram francamente críticas e desqualificadoras. A frase de Marx (1818-1883) de que a religião é o ópio do povo é a mais conhecida das afirmações, mas tanto ele, quanto outros grandes sociólogos e o pai da psicanálise, Freud (1856-1939), estavam convencidos de que a religião desapareceria com o desenvolvimento da ciência e da racionalidade moderna, postura que já se encontrava no pensamento, por exemplo, de Lucrécio, no século I a.C. Este afirmava que a religião nascia do medo do incontrolável, que sua função seria induzir os homens a realizar até mesmo coisas nefandas e que ela estava destinada a desaparecer.
Na atualidade, há autores que afirmam que se está diante de uma realidade que estaria apontando para uma possível implosão do próprio conceito de religião (Oro e Steill, 1977), o fim da religião (Giumbelli, 2002). Fala-se ainda de decomposição do religioso. O fato é que se assiste a uma perda crescente de autoridade das instituições religiosas, um processo de desinstitucionalização, de indiferentismo religioso, de carência de "vocação" ou de interesse pelo ingresso em ordens religiosas. Hortal (1993) pensa o processo, no início da década de 1990, em termos de que a religião teria virado artigo de consumo descartável. E uma das questões postas pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) na abertura da revista onde foi publicado o texto de Hortal foi: "O que fazer diante da expansão dos grupos religiosos não católicos?".
O fato é que a religião e a religiosidade não desapareceram, mas estariam sendo revividas, como nos sugere o título do livro do sociólogo Berger (1996), Rumor de Anjos: a sociedade moderna e a redescoberta do sobrenatural. E os que se declaram "sem religião" são, em sua maioria, crentes sem vínculo institucional, podendo ser, inclusive, confundidos com religiosos, principalmente, por terem crenças próprias, sobretudo do universo cristão (Fernandes, 2006; Novaes, 2005). E este reviver, na atualidade ocidental, aponta para questões muito instigantes. Uma das mais evidentes é o processo de transmutação de religião em espiritualidade.
Espiritualidade refere-se, especialmente, a uma questão de natureza pessoal: resposta a aspectos fundamentais da vida, relacionamento com o sagrado ou com o transcendente, o qual pode (ou não) levar ao desenvolvimento de rituais religiosos e à formação de comunidades. Para Hill e Pargament (2003), a espiritualidade está ligada aos aspectos pessoais e subjetivos da experiência religiosa e a uma busca pelo sagrado, processo através do qual as pessoas procuram descobrir e, em alguns casos, transformar aquilo que têm de sagrado em suas vidas.
Este artigo trata de algumas das questões sobre o referido processo. Ou seja, a construção de um campo religioso pluralista marcado por duplicidades e multiplicidades; o crescimento da busca por uma religiosidade não convencional; a "psicologização" da religião; a privatização e individualização típicas da modernidade levadas às últimas conseqüências; a "empresarização" das igrejas e a "espiritualização" das empresas.
Estas reflexões são fruto, sobretudo, de anos de pesquisa que vem sendo desenvolvida no Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em torno da Sociologia das Adesões: religiosidades não convencionais. Estas se ancoram na capital federal e entorno. Entretanto, os seus resultados podem ser, em boa medida, generalizáveis, pelos motivos que se seguem.
Uma das etapas desta investigação foi uma pesquisa comparada internacional realizada com quase 4.000 estudantes universitários de 16 universidades em 10 países europeus e americanos (Argentina, Brasil, Colômbia, Uruguai, Alemanha, Áustria, Grã-Bretanha, Itália, Portugal, Estados Unidos) sobre religião e esoterismo (Valle-Hollinger, Siqueira e Hollinger, 2002). Confirmou-se a tendência, no Ocidente, da busca por religiosidades não convencionais. No que se refere ao processo de "psicologização" da religião, comprovou-se que a maioria dos estudantes teve algumas experiências com as práticas não convencionais ou New Age. Tal processo iniciou-se como pequeno movimento contracultural, na década de 1960, nos Estados Unidos, como uma reação às condições e à organização de vida das sociedades industrializadas. Fez parte de um movimento mais amplo de contestação, incluindo o movimento hippie e o estudantil. O ano de 1968 é um ano de referência para o movimento contestatório estudantil, que eclodiu na Europa e também na América Latina. As atividadesNew Age têm se tornado crescentemente populares, particularmente entre as novas gerações e os estratos da população com maior nível de escolaridade, articulando-se à utilização de práticas orientais, de crenças e práticas pré-capitalistas, à ecologia, aos movimentos pacifistas e holísticos (que buscam a unidade), dentre outros. Um número considerável dos estudantes teve um contato bastante próximo com o mercado esotérico.
O padrão de disseminação dessas atividades entre os diferentes países pesquisados não é tão distinto como é o caso da religiosidade e das crenças mágico-esotéricas. Métodos orientais de espiritualidade e cura têm sido praticados mais freqüentemente por estudantes dos países do norte e oeste da Europa. Fora desse continente, esses métodos têm maior grau de disseminação nos centros metropolitanos (como Brasília, Montevidéu e Medellín) do que em cidades menores e mais conservadoras. Os métodos esotéricos que já tinham uma longa tradição nas sociedades ocidentais (curandeirismo, cartomancia) são praticados, mais freqüentemente, pelos estudantes latino-americanos, mas também pelos norte-americanos.
Examinando-se os resultados internacionais das atividades New Age e não convencionais, com os resultados da religiosidade e das crenças mágico-esotéricas, pode-se afirmar que a prática esotérica na Europa norte-ocidental tem um caráter bastante secularizado: os métodos espirituais e esotéricos têm sido usados para obter experiências holísticas (emocionais, sensuais, cognitivas) e para explorar a própria personalidade, sem que isso implique, necessariamente, adesão às crenças associadas a tais práticas em seu contexto original. Por sua vez, os métodos espirituais e esotéricos na América Latina e também nos Estados Unidos têm sido vistos mais na sua forma original, isto é, ligados a um cosmo sagrado de entidades espirituais e divinas.
Em outras palavras, os resultados desta pesquisa confirmam o privilégio da capital do Brasil como objeto destes estudos. Ao mesmo tempo em que nela se fazem presentes crenças e práticas mágicas tradicionais da sociedade, o padrão de consumo de práticas New Age e não convencionais é semelhante aos da Europa.
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