O desejo do desejo

DESEJAR O DESEJO



LACAN E O DESEJO DO DESEJO DE KOJÈVE – I


Autor: João José Rodrigues Lima de Almeida
Titulação: Doutor em Filosofia pela UNICAMP
Área: Filosofia da Psicanálise

Resumo: Este artigo defende a tese de que o principal operador da teoria psicanalítica de Lacan é a ontologia negativa de Kojève. Isto implica as seguintes consequências: (a) sua concepção de linguagem éidealista; (b) a negatividade fornece uma explicaçãodessubstancializada da organização do desejo; (c) mediante a antropologia kojeviana, Lacan pode aspirar a uma cientificidade particular para a psicanálise centrada na formulação lógica de uma subjetividade sem psicologia.

Abstract: This article defends the thesis that Kojeve’s negative ontology is the leading operator in the Lacanian psychoanalytic theory. This implies the following consequences: (a) an idealist conception of language; (b) the negativity provides a desubstantialized explanation of the desire’s organization; (c) through the Kojevian anthropology Lacan could aspire to a particular scientificity for psychoanalysis centered in the logical formulation of a subjectivity without psychology.

Palavras-Chave: filosofia da psicanálise, Lacan, Kojève.
Keywords: philosophy of psychoanalysis, Lacan, Kojève.


LACAN E O DESEJO DO DESEJO DE KOJÈVE
João José R. L. Almeida
Psicanalista
Doutor em Filosofia da Psicanálise pela UNICAMP
Na teoria da linguagem do sacerdote Tzinacán, cada palavra está concatenada com todas as palavras do universo, e o universo tem todas as palavras necessárias para descrevê-loO cosmos é uma espécie de rede infinita que uma mente infinita pode conter de imediato na consciência. A linguagem dessa mente infinita percorre instantaneamente todos os meandros da rede. Nessa linguagem, chamemo-la de “completude”, dizer “tigre” é dizer os tigres que o engendraram, os cervos e as tartarugas que devorou, os pastos de que se alimentaram os cervos, a terra que foi mãe do pasto e o céu que deu luz à terra. Uma palavra é, ao mesmo tempo, todas. De maneira que a enunciação de apenas uma, é a própria plenitude; não de maneira implícita, mas explícita, não de modo progressivo, senão imediato. A particularidade é inecessária, posto que o falante desta língua tem presente para si o universo, nele incluídas todas as particularidades. Tampouco o bem e o mal servem para algo: assim como nos jogos de azar a quantidade de números pares e ímpares tende ao equilíbrio quando estendidos na totalidade do tempo, do mesmo modo se misturam e se anulam as virtudes e as infâmias no final da história. Encarados pelo infinito, todos os nossos atos são justos, mas também indiferentes. Que importa, portanto, um dos seres humanos? Quem já entreviu o universo, quem já presenciou todos os ardentes desígnios do universo, não pode pensar em um homem ou em uma mulher, nas suas desditas e desventuras triviais, mesmo que essa pessoa seja ela mesma. Do ponto de vista humano e particular, dizer tudo é, ao mesmo tempo, dizer nada.1
Do ponto de vista humano, e particular, se quisermos completar a parte que falta de nossa limitação lingüística para chegar à “completude”, basta preenchê-la de “nada”. Não chegaremos, certamente, à teoria da linguagem de Tzinacán, porém, mais modestamente, teremos uma forma particular de teoria idealista da linguagem negativizante, não a própria “completude” como “preenchimento”, nem como antecipação presente de uma verdade como totalidade, mas a sua forma operativa como “não-todo” ou “incompletude” cuja função é anular as particulares pretensões de plenitude pela intervenção negativizante do resto ontológico não subsumido pelas aparências abstratas. Para o idealismo, há duas alternativas: ou o mundo, e toda a sua história, é a extensão da própria Razão, e “o Real é racional”, ou a Razão estendida não se identifica mais com o que pensávamos, mas é Outra, depois de absorver a desrazão, o irracional, o inconsciente e o subjetivo que lhe faltavam.

1. Refiro-me ao conto “La escritura del Dios”, em BORGES, 1971, pp. 133-141. 

O principal operador da teoria lacaniana, a hipótese de que desejo é falta, é uma concepção subsidiária da “ontologia negativa” deAlexandre Kojève. A idéia de falta, de perda, de corte, de limite, constitui a existência como tensão permanente, como luta infinita pela recuperação de um gozo definitivamente perdido. Para Lacan, o corte é ocasionado pela linguagem. Sua concepção de linguagem é idealista porque esta não se refere senão a si mesma; nada diz sobre o mundo, porque o exclui, nem sobre o sujeito, porque o subordina aos seus liames e deslocamentos. Esta característica também está presente no estruturalismo; afinal, para Lévi-Strauss, ser é estar na linguagem: “…os símbolos são mais reais que aquilo que simbolizam, o significante precede e determina o significado.”A diferença, entretanto, é que a concepção de linguagem de Lacan segue os parâmetros filosóficos kojevianos para comportar na estrutura a idéia de uma subjetividade.

Certamente a conceitografia de Lacan não é a mesma de Kojève. O sentido de “desejo como falta”, em Lacan, torna-se distinto porque o uso que se faz da idéia é outro. Enquanto em Kojève o conceito de desejo está vinculado a uma descrição da História como luta entre o Senhor e o Escravo, e o movimento social em sua totalidade aponta para um fim inexorável, em Lacan não há indicação de “final” nem se pretende descrever a “história”, mas o “sujeito”. A negatividade é aprofundada pelo ato da sua incorporação à psicanálise e à sua concepção de linguagem. O “desejo do desejo do outro” permanece ontologicamente dissimétrico para dar forma à impressão de um fundo patogênico. Deste modo, o sujeito, em confronto com o Outro, é uma inclusão da aniquilação do ser, da sua própria morte, do seu desaparecimento, na formação da subjetividade. Não há escapatória. No primeiro caso, a negatividade é a figura dominante que dispara o movimento histórico e a formação do ser humano como efeito da sociedade agonística; no segundo caso, é a figura absoluta e constituinte da psicologia no ambiente da “luta pelo puro prestígio”.

Como é possível chegar-se à conclusão de que a negatividade é constituinte da psicologia? Por que não pensar que a falta, o vazio ou o nada, surjam no próprio ato de desejar, no próprio exercício da subjetividade, sem separação prévia? Por que em vez de haver condicionante e condicionado, não se trataria apenas de uma constituição conjunta de duas entidades psicológicas, o desejo e o sentido de carência? Proponho duas evidências para provar o ponto. Primeiro, o argumento metafísico: enquanto o desejo pode ser interpretado, segundo o contexto, de um comportamento humano, nada pode ser interpretado do “nada” ou da “falta” como impulso do desejo. Para postular-se a existência de tais entidades, seria necessário efetuar o acréscimo de uma entidade ao comportamento. O fato de que exista uma abertura da possibilidade, de que exista uma impossibilidade de fundamento dos projetos, e de que a ação humana seja premida pela morte, não autoriza o pensamento da falta como componente organizador. O desejo não pode ser nada mais que uma produção sem fundamento, o desenrolar de uma intenção cujo projeto justifica-se apenas pelos elementos que integram a própria ação, e pelas outras ações correlacionadas, sem privilégios epistêmicos. Se não houver privilégio, não pode haver instrumento prévio, ou nada de fora da ação. O pensamento do desejo como falta, no entanto, apensa um fundamento ou elemento ao redor do qual dispõem-se ou constituem-se os demais. A diferença entre “falta a ser” e “ser em falta” é decisiva neste caso. Lacan ressalta apenas a “falta a ser”.

2.LÉVI-STRAUSS,C.,1950,p.XXXII. 

Em segundo lugar, o argumento temporal: para pensar-se o desejo como falta, esta deve anteceder na sucessão o movimento da espontaneidade volitiva; ela só é originária e fundante neste sentido. Se desejo é falta, não se pode desejar sem que o vazio se instaure precedentemente; deve haver antes de tudo o sentimento de perda, pois é justamente este sentimento que provoca o movimento de recuperação e empresta sentido à idéia do desejo como falta; a “falta” é, portanto, a explicação última do fenômeno do desejo como o primeiro da série na visão retrospectiva.

Kojève concebe o ser humano no plano da luta com o outro, à maneira de uma “presença real do nada no ser” ou como um “vazio ávido de conteúdo”.Mas este plano relacional e bidimensional não é mais que uma fenomenologia em clave histórica e intersubjetiva. Lacan não envereda pela fenomenologia, segue os caminhos da sua concepção de linguagem, e, assim, aprofunda a negatividade constitutiva ao desdobrar outros planos de ação lingüisticamente concomitantes. Deste modo, por exemplo, concebe o desejo como ação em plano tridimensional, subdividido na tríade necessidade-demanda-desejo; enriquece a antropologia agonística de Kojève idealizando a luta entre o eu e o outro na forma dinâmica do par limite/perda: o neurótico é aquele que não quer sacrificar sua castração em favor do gozo do Outro, deixando-o servir-se dela4 (denegação da própria falta pela pretensão de suprir – e, assim, afirmar – a falta do Outro); durante a fase topológica do seu pensamento, para dar a compreender como a demanda do neurótico é o objeto do desejo do Outro, postula, numa determinada dimensão, a demanda de amor como voltas em torno do vazio, como repetições em séries de idas e vindas a percorrer a parede interna do tubo de uma câmara de ar sem conteúdo. Mas, em outra dimensão, concorrente e simultânea, faz com que o movimento circulatório e contínuo da demanda, tomado em retrospectiva, realize um contorno ao redor de um suposto objeto de satisfação desconhecido: objeto de desejo do Outro, chamado “objeto a”, ou “causa do desejo” pelo resto que falta para inteirar a completude. Do ponto de vista da outra direção, o vazio da demanda contorna o “nada fundamental” [le rien fondamental] por excelência.5

3. KOJÈVE,A., 1947, pp. 91 e p. 167.
4. LACAN,J. 1966a, p. 826.
5. LACAN,J. 1961, lição de 30/05/1962. 

A diferença entre Kojève e Lacan estriba-se em que, no segundo, a negatividade constitutiva é cingida pela tridimensionalidade da linguagem mediante o postulado tético de modulações indissociáveis e cooperantes, denominados como “real”, “simbólico” e “imaginário”, e pelo fato de que a idéia de um final da história retira-se de cena. O “nada” estático fica diferente do “vazio” (se podemos fazer essa diferença), porque são “faltas” compreendidas segundo diferentes dimensões:

               (1) a primeira “falta” aparece no palco da demanda, quando esta gira ao redor do vazio (e não do nada) na busca da próxima insatisfação – a insistência do significante remete o movimento de busca para o eixo do seu próprio encadeamento (o simbólico), frustrando a demanda.
              (2) A segunda “falta” é fundamental e está no plano do real. Surge na falha do simbólico, ao mesmo tempo em que a impossível completude é bordejada na direção de outro eixo (o real) e dá conta de uma inevitável “castração” (“presença da ausência”).
               (3) O sujeito, para Lacan, é a apreensão imaginária (ou numa fantasia de sujeito ligado a um objeto) da representação que um significante remete a outro no seu movimento de contorno do objeto metonímico do desejo; ou, em outra figura recorrente, é a superfície unilátera cujo movimento contínuo serve-se dos dois lados, e representa-se pela fita de Moebius (veja os vídeos abaixo… postados porseletinof), inscrita nos contornos do vazio e do nada dos buracos encadeados dos toros entrecruzados.6

A introdução de uma teoria da linguagem no pensamento de Lacan, a partir da incorporação do estruturalismo em 1953, recobriu a fenomenologia do desejo como falta e a transformou em ação lingüística: o sentimento de perda e o nascimento do desejo acompanham a aquisição simbólica. A linguagem tornou-se a castração. O que resta desse corte, seria, no imaginário, o que falta ao sujeito para assegurar a completude do Outro, e, no simbólico, a incompletude insanável do Outro. Desta maneira, explica-se com eficiência o desejo pela negatividade

6. A figura de dois toros entrecruzados pelo seu furo central é a ilustração a que recorre Lacan no seminário IX, da “Identificação”, para demonstrar a idéia da circulação da demanda ao longo do eixo da alma do toro, bordejando, pelo movimento circulatório, o objeto do desejo do Outro, representado pelo vão central do segundo toro. Como são dois toros entrecruzados, o objeto do desejo de um é também a demanda do outro, e vice-versa.

mediante a demanda, posto que a parte faltante exerce uma poderosa influência de atração de dentro para fora do simbólico. Neste sentido é que o inconsciente, cuja condição é a linguagem, foi definido muitas vezes como “discurso do Outro”, e uma vez como “a parte do discurso concreto, como transindividual, que falta à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade do seu discurso consciente”.7No fundo, trata-se sempre de conceitualizar o aspecto concreto pela força negativa que vem de fora e desmancha a ordem de dentro. A teoria lacaniana consiste em várias tentativas de formalização simbólica da conjunção deste negativo fundador e suas projeções imaginárias por meio do simbólico. Como se a conceitografia pudesse dar conta simultaneamente do externo e do interno, dopositivo e do negativo, do racional e do irracional, e dosubjetivo e do objetivo. Os pares são concebidos como indissociáveis pela retórica idealista, pelo recurso de assumir contradições e impasses como formas naturais da existência.

O problema lingüístico de Lacan não será analisado, entretanto, neste artigo. Meu propósito resume-se apenas ao enfoque da formação do núcleo dinâmico do projeto de umapsicanálise científica centrada na idéia de uma subjetividade sem psicologia. Lacan precisou da definição kojeviana para ter uma concepção do desejo que fosse ao mesmo tempo concreta e unívoca. Essa concepção satisfaria seu ideal de ciência, porque poderia efetuar com ela a redução de todos os fenômenos psicológicos a uma só raiz objetiva: o eu em conflito com o outro. O sujeito em Lacan já não é mais o mesmo da psicologia, substancializado; tampouco é o da fenomenologia, uma consciência a projetar e produzir um sentido. O sujeito em Lacan é um postulado quase-transcendental, uma divisão imposta pela perda, um ponto evanescente, inencontrável, sem referência, existência ou realidade empírica, mas pressuposto como condição de possibilidade das ações de desejo. Formalizar teoricamente a subjetividade em conjunção com a negatividade – no que resulta uma subjetividade alienada e evanescente – tornou-se uma aquisição permanente da teoria lacaniana, no sentido de apresentar sempre, e renovadamente, alguma solução impessoal e rigorosa para fenômenos totalmente insubmissos à sintetização em termos de hipóteses necessárias e universais.
Embora a influência kojeviana não seja sequer mencionada pela maioria dos comentadores de Lacan, ou seja minimizada em outros casos,penso que é factível a suposição de que todas as modificações e formas que a teoria lacaniana tomou respondem, no principal, a este operador de fundo. Considerando de outra perspectiva, a idéia é que a psicanálise lacaniana não é apenas uma teoria externalista e impessoal dos fenômenos mentais ou dos fatos psicológicos; isto é, uma teoria que apenas propõe como fator causal e eficiente do comportamento um terceiro elemento, a unidade fonológica significante e seus encadeamentos formais. Mais do que isso, o que basicamente distingue o inconsciente estruturado como uma linguagem, de Lacan, do inconsciente estrutural, de Lévi-Strauss, para tomar as duas teorias irmãs, é que, permanecendo iguais os explananda, oexplanans se diferencia fundamentalmente: Lacan acomoda a sua própria eficácia simbólica ao redor de um oco tomado como fator eficiente no fundo da causalidade. A causalidade significante teria, em Lacan, uma espécie de gerador que lhe serviria de fixação. A sua teoria poderia, se quisesse, terminar ali, onde a estrutura sintática tenciona dar conta dos fatos. Não obstante, ela tem a particularidade de seguir adiante e achar outros fatos últimos em si mesmos inexplicáveis. Veremos a seguir as principais influências de Kojève sobre Lacan, depois tentarei dilucidar por que Lacan aderiu à ontologia negativa de Kojève e, por fim, apresentarei uma interpretação acerca deste ideal de “completude negativa”.

7. LACAN, J.1966b, p. 258.
8. A maioria dos comentadores supõe que a influência é de Hegel, atropelando a diferença e o tipo de hegelianismo de Kojève. Assim, Phillipe Julien, por exemplo, não comenta a influência de Kojève: cf. JULIEN,P.,1993. Erik Porge a reduz somente à teoria do estágio do espelho, omitindo todas as outras variações e atribuindo, em muitos casos, apenas a uma influência hegeliana sem mencionar a intermediação de Kojève, cf.PORGE,E., 2000, pp. 68, 230. ElisabethRoudinesco, dilui a influência de Kojève juntando-a ao outro “K” aquem Lacan tomou conceitos de empréstimo, Alexandre Koyré, e situando-a unicamente numa suposta formação hegeliana anterior, cf.ROUDINESCO,E.,1994, pp. 101-120. David Macey, no afã de desfazer uma tese de unidade formal do pensamento lacaniano e vinculá-lo unicamente às reviravoltas da intelectualidade francesa da época, vê inclusive incompatibilidade entre a influência politzeriana e a de Kojève, como se uma fosse o pólo concreto e a outra o pólo abstrato da teoria lacaniana: cf. MACEY,D.,1988, p. 102. A única fonte de apoio e divulgador desta hipótese é Mikkel Borch-Jacobsen: Cf. BORCH-JACOBSEN,M., 1991, pp. 293-314; e BORCH-JACOBSEN,M.1990(1995). No Brasil, entre os poucos que mencionam o kojevismo em Lacan, senão os únicos, estão ARANTES,P. 1991, pp. 72-79, e 1992, pp. 64-77; além de SIMANKE,R. 2002.

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