A morte e suas funçoes

Descoberta da Imortalidade e suas Funções


As pesquisas sobre imortalidade não estão no terreno da pura ficção. Há novas notícias delas. O biólogo Fernando Reinach publicou artigo sobre o tema. Em tese, a idéia não é nada maluca. Nossas células germinativas são imortais. Nossas células somáticas, não. A idéia básica é a de transportar características das primeiras para as segundas. Até aí, a ficção. Até aí, é o que eu sabia com a minha biologia de ensino médio. O que Reinach divulga é que a ficção, mais uma vez, está sendo realizada, ainda que se esteja em passos bem iniciais.

O fato é que os cientistas não conseguiram ainda retardar o envelhecimento de órgãos – e é este o objetivo que perseguem –, mas eles estão já sabendo, ao menos, que a reprogramação de células somáticas a partir do que fazem as células ditas imortais, as germinativas, é perfeitamente possível. Ora, nesta hora, o biólogo volta para o laboratório, o filósofo vai para às ruas.

Se as pesquisas estão certas, num futuro que, segundo Fernando Reinach, avaliamos como longínquo, poderemos pensar na imortalidade. Ora, para o filósofo, uma conclusão como esta não precisa nem um pouco do futuro para ter suas conseqüências. Suponhamos que uma parte da população escolarizada, informada e, é claro, inteligente, entenda que esse caminho é viável, então, o que isso significa para o pensamento social que lida com a morte? Por exemplo, as doutrinas mais dependentes, atualmente, da não existência da imortalidade, são as doutrinas religiosas. Caso possamos nos convencer que o que Fernando Reinach diz é correto, e temos tudo para isso por meio da nossa cultura média, podemos então abolir, desde já a idéia de que morte e religião estão ligadas do modo como estão. Caso estivéssemos no mundo grego, uma descoberta assim teria um impacto tremendo, mas não faria a religião desaparecer. Todavia, e no nosso mundo ocidental moderno, o mundo dito oficialmente cristão, o que é compreender que a imortalidade é factível?

O problema todo recai, novamente, no modo como Jesus articulou a sua noção de esperança com a nossa tarefa ética. O problema é, mesmo, o de como pensamos na noção de esperança.

A esperança nossa, de pragmatistas rortiano-davidsonianos, é uma esperança vaga, ela não se vincula a uma utopia pré-determinada. No máximo, o que nós dizemos é que temos esperança de construir uma sociedade futura em que possamos ser “versões melhores de nós mesmos”. Do mesmo modo que Marx, nós também evitamos delinear nossa utopia (o comunismo nunca foi mais que mera palavra, nunca foi uma utopia no sentido das utopias clássicas, bem detalhadas). Por isso podemos dizer, junto com Rorty, “antes esperança que conhecimento”. Conhecimento para, então, se ter a utopia, é algo esquisito. Caso possamos saber tudo do futuro de modo a delineá-lo aqui para realizá-lo lá em detalhes, tudo indica que o resultado não será bom – ao menos foi o que aprendemos no século XX.

Ora, mas a esperança que Jesus trouxe tem um componente diferente. Os cristãos não discordam dos pragmatistas quanto à idéia de que podemos – e devemos – tentar construir sociedades futuras em que seus membros sejam “versões melhores de nós mesmos”. Mas os cristãos discordam de nós quando ficamos mais ou menos satisfeitos com essa nossa idéia de utopia. Eles nos acham muito humildes. Pois a esperança deles segue pelo caminho de Jesus, o de vencer a morte. Um caminho que os cientistas do artigo de Reinach acreditam que existe.


Os cientistas imaginam vencer a morte sem ter de enfrentá-la. É uma boa tática. Jesus foi mais ousado: ele disse que venceria a morte, enfrentando-a. Foi para a Cruz e, depois de morto, reapareceu para os apóstolos, bem vivo. E com o mesmo corpo – inclusive, datado, pois ainda perfurado pela crucificação. Tendo perambulado por entre eles durante vários dias, finalmente, segundo o que diz o “Credo”, “subiu aos Céus de corpo e alma, onde está sentado à direita do Pai”. Claro, o “Credo” ainda diz mais. Diz que Jesus e voltará para “julgar os vivos e os mortos”. Assim, neste exato momento, os mortos de fato terão a ressurreição, para serem julgados. E os que estiverem vivos, também serão julgados. Fica claro, portanto, que se formos imortais, ainda assim, a tarefa de Jesus não terminou. Pois o tal do julgamento final está posto, em qualquer circunstância. O que fica um pouco desacreditado é, assim, somente a idéia de que unicamente Jesus poderia vencer a morte. Além do mais, uma vez que ele reapareça, e ponha seu julgamento para funcionar, o que ele poderia nos dar de vantagem que já não tivéssemos conseguido? Já não teríamos a tal de imortalidade, de vida eterna, que ele disse que só ele poderia dar?

Pois bem. Como se vê, uma vez posta a questão imortalidade como um elemento factível, não é necessário esperar por ela para ver como que a filosofia já tem de ser alterada. Uma boa filosofia deve, agora, para ser inteligente, dar mais crédito a William James, que dizia que a religião é verdadeira se acreditamos nela. Parece que é isso que temos de levar em conta, principalmente agora. Pois, mais do que antes, a religião, agora, ganha componentes de doutrina prática, e menos de conjunto teórico. O que faz um cristão num mundo em que a imortalidade se torna um fato, senão para nós no presente, ao menos para outros, no futuro? O intelectual que ainda quiser se cristão, precisa, a partir daí, tomar o cristianismo como Nietzsche o tomou, como uma revolução moral, não como uma mostra de poder sobrenatural capaz de, ao fomentar a esperança, fazer tal coisa pela idéia de “vencer a morte”.

Em outras palavras: tornamos o Velho Testamento uma fábula, um conjunto de alegorias, e agora vamos ter de fazer o mesmo com o Novo Testamento. Ou fazemos isso, ou não teremos mais como sustentar – ao menos que não tenhamos formação no ensino médio para entender a biologia explicada por Reinach – o cristianismo em um de seus pontos fortes, ou seja, a posição de Jesus como o único capaz de vencer a morte, de corpo e alma. Ou seja, “vencer a morte” deve ser algo, daqui para a frente, um frase cada vez mais alegórica, metafórica. O que deverá indicar essa metáfora, aí, isso fica por conta dos teólogos que quiserem reconduzir o cristianismo no interior de um pensamento inteligente.

O que diferenciava os gregos antigos de seus deuses não era a questão dos deuses serem seus criadores. Não! O que os diferenciava era o fato dos deuses serem, embora naturais, imortais. O Olimpo nunca foi o Céu. O Olimpo era de fato o Monte Olimpo, a morada terrestre dos deuses. O Céu cristão é “um outro mundo”. “Meu reino não é desse mundo”, disse Jesus. Ora, o Olimpo estava e está no mundo nosso, e os deuses, não raro, saiam de lá e faziam sexo com mortais, gerando os heróis. Assim, a imortalidade, caso introduzida no mundo grego, apenas faria um ateniense já ser mais orgulhoso do que era. Na nossa sociedade atual, cristã, as implicações são maiores. Há uma barganha entre os donos de igrejas e os fiéis em torno da imortalidade. Essa barganha, para os não intelectuais, é feita por meio da simples troca de mercadorias: promessas de um lado, cura de outro; pagamentos de um lado, o Céu de outro. Para os intelectuais cristãos, a troca se dá de um modo dito mais sofisticado: imperativos morais de dever podem se por como imperativos, e isso é tudo o que os intelectuais querem, isso já os tranqüiliza, e essa tranqüilidade é o suficiente para, enfim, ficarem contentes com o Céu. Como se vê, em certa medida, o povo é mais exigente na troca com o Céu do que os intelectuais.

Todavia, o problema da imortalidade posta pelo artigo de Fernando Reinach não é um problema popular. A biologia do ensino médio não é de domínio popular. Mesmo que fosse, o elemento popular não põe fé nela! Agora, para o intelectual cristão que, enfim, ainda não transformou o cristianismo em uma exclusiva doutrina moral, a situação é diferente. Uma vez que Jesus não pode mais se dizer o único que é capaz de vencer a morte, ou transformamos tudo que ele disse, tudo mesmo, em alegoria, ou então teremos de conviver com o seguinte fato posto para o futuro: quando Jesus voltar, para que possamos acompanhá-lo, teremos todos de abrir mão da conquista da ciência, teremos de voltar a poder morrer, pois para ir para lá, para os Céus, e ficar à direita ou à esquerda do Pai, temos de atravessar a morte. Bem, Jesus, uma vez de volta, pedirá o quê? Um suicídio coletivo? Quem irá topar?

Bom, podemos então abrir mão de todo tipo de razão. Podemos conceder a Jesus a idéia de que, sendo ele filho de Deus, e tendo Deus achado que o dia do Juízo Final realmente chegou, e tendo a humanidade já até esquecido o tempo em que os seres humanos morriam (supondo, portanto, que o Juízo Final é bem depois da conquista da imortalidade posta na conta do artigo do Fernando Reinach), todos poderão simplesmente esquecer essa coisa de “subir aos Céus”. Ou seja, Deus deverá fundir o Céu e a Terra. Não sei o que significa exatamente essa frase. Será ela algo como “fundir duas dimensões”? Bom, mas seja lá o que for isso, essa seria uma forma de união final entre nós e nossos deuses sem que viéssemos a morrer. Ou seja, não seria preciso nem o suicídio coletivo nem a maldade de Deus nos lançar em alguma catástrofe para que o mundo viesse ao seu fim. Ou seja, o que estou dizendo é que posso conceder a Deus aquilo que já é dele: “Para Deus tudo é possível”.

Haveria, então, o momento de fusão entre a ordem natural e a ordem supranatural, a ordem divina. Passado isso, nunca teríamos sabido se foi Deus que desceu do Céu ou se fomos nós que subimos. A idéia de Jesus, de ultrapassar a morte batendo de frente com ela, ficaria como coisa do passado. Não teríamos a petulância de vir remoer o passado. Ninguém, tendo boa educação, ficaria lembrando então, na frente de Jesus, piadinhas do tipo: “ah, conseguimos a imortalidade sem a cruz” e coisas do tipo. Aliás, Jesus, talvez, até pudesse ouvir coisas desse tipo, e retrucar: vocês é que pensam que não tiveram cruz!

Todavia, vejam que o problema real, filosófico que temos, é o de agora: para que possamos conviver com o cristianismo e com as informações da biologia atual, se quisermos ser cristãos e intelectuais ao mesmo tempo, há muito exercício filosófico para se fazer no âmbito religioso. Não para a população, ao menos por enquanto, mas, certamente, para os intelectuais cristãos. É trabalho duro. Estou com pena do serviço que meu amigo italiano, o filósofo Giovanni Vattimo, tem pela frente.

Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo

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