Indagações sobre o mal

Indagações sobre o mal

As muitas incertezas que rondam o mal são um convite à reflexão sobre a experiência humana
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Wilker Sousa
Questionada sobre quais de suas obras mais estimava, Clarice Lispector citou o conto “O Ovo e a Galinha” e também “uma coisa que eu escrevi sobre um bandido”. A escritora aludia à crônica “Mineirinho”, publicada nas páginas do Jornal do Brasil. Naquele texto breve e prenhe de sensibilidade, Clarice demonstrava sua revolta mediante a brutalidade com que a polícia carioca assassinara um bandido conhecido como Mineirinho. Paralelamente à enumeração de cada um dos 13 tiros disparados à queima-roupa, o texto narra o crescente percurso de perplexidade vivenciado pela autora até culminar na mais completa comiseração: “O décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro”. Se o propósito do policial era matar o bandido, o que o teria levado a disparar 13 tiros, quando apenas um bastaria?
TrivialidadeA convite da revista New Yorker, a filósofa Hannah Arendt foi a Jerusalém em 1961 fazer a cobertura do julgamento de Adolf Eichmann, integrante do Reich responsável pelo transporte de milhares de judeus para os campos de concentração. Arendt via na experiência totalitária a cristalização do chamado “mal radical”, pois o regime nazista eliminara a espontaneidade e a liberdade individual dos homens, tornando-os supérfluos, o que resultou em Auschwitz. Ao acompanhar o julgamento, a filósofa não deparou com a personificação da malignidade e do antissemitismo. Ao contrário, o réu não demonstrava qualquer aversão ao povo judeu. Tivera inclusive uma amante e um amigo de escola judeus.
O que o motivara, então, a colaborar com tamanha barbárie? Tão somente acatar e cumprir prontamente as ordens que lhe foram passadas. “Ele estava perpetrando um mal radical, por conta da descartabilidade do ser humano. No entanto, o fez sem se dar conta da monstruosidade”, explica o jurista Celso Lafer, autor de A Reconstrução dos Direitos Humanos, um Diálogo com o Pensamento de Hannah Arendt (1988). “O que Hannah Arendt aponta em sua análise sobre o regime nazista é que deixou de haver uma normalidade tal como nós a entendemos. A normalidade nazista baseava-se num estado que perpetrava o mal radical. Por causa disso, alcançou também aqueles que estavam por perto, inclusive o cidadão comum e as próprias organizações da comunidade judaica que, tentando evitar um mal maior, acabaram contribuindo para que o mal se perpetrasse”, completa Lafer. Com base nessa inabilidade de pensamento e na completa ausência de sensibilidade por parte de Eichmann, Arendt cunhou a expressão “banalidade do mal”, desenvolvida no livroEichmann em Jerusalém: Um Relato sobre a Banalidade do Mal (1963).
Guardadas as devidas diferenças histórico-sociais, não seria exagero supor que as categorias do “mal radical” e da “banalidade do mal” se aplicam à experiência do século 21. A assustadora frieza da qual padecia Eichmann parece encontrar terreno fértil para propagação em meio ao modo de vida contemporâneo, cujo ritmo alucinado acaba por acentuar o apagamento do indivíduo e, por conseguinte, minar a alteridade. Segundo o psicólogo Antonio de Pádua Serafim, “as pessoas que apresentam um comportamento de maldade têm antes um defeito na formação do caráter. O caráter é constituído de sentimentalismo, que é a capacidade do indivíduo de se colocar no lugar do outro e ter respeito pelo outro. O que nós encontramos é um grupo de pessoas que não têm isso”. Coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Psiquiatria Forense e Psicologia Jurídica do Instituto de Psiquiatria da USP (Nufor), Antonio é enfático ao comentar a influência do modo de vida contemporâneo na ocorrência de crimes atrozes: “Sem dúvida. Hoje vivemos um aumento da violência urbana e, além disso, a globalização exige o ‘ter’ e não necessariamente o ‘ser’. Existe uma competitividade muito grande. Essa condição sociofuncional é de fato um disparador para a ocorrência dessas características”.
Inato?A despeito dos fatores sociais que possam favorecer sua prática, o mal é inato? Indivíduos que cometem crimes brutais e também aqueles com comportamentos considerados “malévolos” trariam o mal marcado em seus DNAs? “Com relação à maldade, eu acredito que exista uma predisposição biológica. É muito difícil um psicólogo falar assim, mas eu tenho uma formação mais psicobiológica. Há pessoas que têm algumas predisposições na sua genética e a interação com determinados estilos de ambiente vai potencializar essas características”, defende Antonio Serafim. Crer na predisposição biológica para o mal não significa, contudo, considerá-lo uma doença, acredita o psicólogo: “É uma necessidade pura e simples de destruição. As pessoas que cometem isso não são necessariamente doentes. (…) Não são doentes do ponto de vista nosológico [ramo da medicina que classifica doenças], mas são diferentes da normalidade ao vivenciar as características da maldade”.
Há 11 anos Ilana Casoy dedica-se ao estudo de crimes violentos. Pós-graduanda em criminologia pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), é autora de quatro livros nos quais investiga o perfil criminal de serial killers nacionais e internacionais. Com base no conhecimento e na experiência que acumulou acerca do tema, mostra-se contrária à patologização do mal: “Minha grande preocupação é como, mais uma vez na história, voltamos a achar que o mal tem uma explicação médica. Novamente, nós vamos ter um positivismo agora revestido de uma linguagem mais moderna, como se o senso moral viesse impresso no DNA. Eu temo um pouco esse discurso. Nós temos de cuidar como um todo”. No que se refere ao perfil do criminoso violento, Ilana afirma que “às vezes é um indivíduo com baixíssima tolerância à frustração, que tem um entendimento completo do certo e do errado, mas com uma dificuldade de controle da sua própria vontade, sem que isso seja uma doença mental”.
De olhos vendadosSe a biologização do mal está revestida de polêmicas, opiniões convergem quando o assunto é a influência de um quadro social desfavorável na perpetração da maldade. Ilana comenta que, na grande maioria dos casos que estuda, o histórico dos criminosos já prenunciava o pior: “Eu vejo vidas em vermelho. Quando se escuta a vida desses indivíduos, questiona-se aonde mais poderiam ir. Certamente é um histórico que não era base para um bom futuro. Isso não é regra, mas é a enorme maioria”. Para que se possa coibir tragédias futuras, Antonio Serafim defende a intervenção de profissionais desde a infância de indivíduos agressivos: “Há crianças com características agressivas acima da normalidade e não se faz um trabalho de prevenção com relação a isso. Elas poderiam ser avaliadas e, se submetidas a intervenções precoces, a possibilidade de se transformarem em pessoas mais violentas seria reduzida”.
Trabalhos preventivos, contudo, esbarram no preconceito e na cultura da reparação de males. “Quando se avalia uma criança e se diz que ela é agressiva, pensam que é estigmatização. Há um preconceito com relação a isso, mas na verdade é uma prevenção. (…) Eu sou favorável a que haja a prevenção, mas o Estado brasileiro, infelizmente, é mais reativo”. A postura do Estado brasileiro, à qual se refere Antonio Serafim, é reflexo do discurso preponderante da defesa de políticas voltadas à segurança pública em detrimento de ações preventivas. Afinal, os resultados da coerção são mais palpáveis e passíveis de se tornarem estatísticas. Embora a discussão sobre nosso código penal seja inegavelmente salutar, não se pode, contudo, olhar apenas a ponta do iceberg, acredita Ilana: “Quem pensa a lei nunca vai resolver a criminalidade. O que vai dar frutos são a educação e a inclusão. Com lei eu não acho que se resolva. Vivemos hoje uma era de muita judicialização da solução. Tudo é matéria penal”.
Delegar ao Estado a tarefa de coibir o mal parece, em última instância, uma tentativa de afastá-lo com todas as forças da vida cotidiana, como se houvesse um hiato entre o mal radical, simbolizado na barbárie que alavanca a audiência dos noticiários, e a benevolência inconteste do cidadão comum. Quadro salvador, não fosse tolo. Desafiador, porém, é desmontar simplismos, vislumbrar a alteridade perdida e “atravessar o mal sem se julgar uma encarnação do bem”, parafraseando Tzvetan Todorov.

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