Originalmente publicado como: “The Absurdity of Life without God”. Texto disponível na íntegra em: http://www.reasonablefaith.org/the-absurdity-of-life-without-god.
Traduzido por Marcos Vasconcelos. Revisado por Djair Dias Filho.
A necessidade de Deus e da imortalidade
O homem, escreve Loren Eiseley, é o Órfão Cósmico. É a única criatura no universo que pergunta: “Por quê?”. Os outros animais têm os instintos para guiá-los, mas o homem aprendeu a fazer perguntas. “Quem sou eu?”, pergunta o homem. “Por que estou aqui? De onde vim?”. Desde o Iluminismo, quando sacudiu de si os grilhões da religião, o homem procura responder a essas perguntas sem fazer referência a Deus. Mas as respostas obtidas não são divertidas, mas tenebrosas e terríveis: “Você é subproduto acidental da natureza, resultado de matéria mais tempo mais acaso. Não há razão para que exista. Tudo que lhe espera é a morte”.
O homem moderno pensava que, ao livrar-se de Deus, também se livraria de tudo que o reprimia e coibia. Em vez disso, descobriu que, ao matar Deus, também matou a si mesmo. Pois, se não há Deus, a vida do homem torna-se absurda.
Se Deus não existe, homem e universo estão condenados à morte. O homem, como todo organismo biológico, deve morrer. Sem a esperança de imortalidade, a vida do homem leva somente à sepultura. Sua vida não passa de uma centelha nas trevas infinitas, uma centelha que aparece, brilha e morre para sempre. Portanto, todos se encontrarão cara a cara com o que o teólogo Paul Tillich denominou de “a ameaça de não ser”. Porque, embora saiba agora que eu existo, que estou vivo, também sei que algum dia não existirei mais, que não serei mais, que morrerei. Esse pensamento é desconcertante e ameaçador: pensar que a pessoa a quem chamo de “eu” deixará de existir, não será mais!
Recordo-me vividamente da primeira vez em que meu pai me disse que algum dia eu morreria. De algum modo, como criança, esse pensamento jamais me ocorrera. Quando ele me disse, fiquei cheio de medo e de tristeza insuportável. E, embora ele procurasse repetidamente me garantir que isso estava muito longe, isso não parecia importar. Fosse cedo ou tarde, o fato inegável era que eu morreria e deixaria de existir, e o pensamento me esmagava. Finalmente, como todos nós, cresci simplesmente aceitando o fato. Todos aprendemos a viver com o inevitável, mas a consciência repentina da criança permanece verdadeira. Conforme observou o existencialista francês Jean-Paul Sartre, tantas horas e tantos anos não fazem diferença, já que se perde a eternidade.
Quer chegue mais cedo ou mais tarde, a perspectiva da morte e a ameaça da inexistência é horror terrível. Certa vez, porém, conheci um estudante que não temia essa ameaça. Ele contou que fora criado numa fazenda e estava acostumado a ver animais nascendo e morrendo. Para ele, a morte era simplesmente natural — uma parte da vida, por assim dizer. Fiquei perplexo com quão diferentes eram nossas perspectivas sobre a morte e foi-me difícil entender por que ele não sentia a ameaça de não ser. Anos mais tarde, acho que encontrei minha resposta ao ler Sartre. Sartre percebeu que a morte não é ameaçadora desde que a vejamos como a morte do outro, ou seja, do ponto de vista da terceira pessoa. É somente quando a internalizamos e a olhamos da perspectiva da primeira pessoa — “minha morte: eu vou morrer” — que a ameaça do não ser torna-se real. Conforme indica Sartre, muitas pessoas, no decorrer da vida, nunca assumem a perspectiva da primeira pessoa. É possível olhar até mesmo a própria morte do ponto de vista da terceira pessoa, como se fosse a morte de outra pessoa ou mesmo de um animal, como fazia meu amigo. Mas a importância existencial verdadeira da minha morte só pode ser considerada da perspectiva da primeira pessoa, quando compreendo que vou morrer e deixar de existir para sempre. Minha vida é somente uma transição momentânea do esquecimento para o esquecimento.
O universo, também, enfrenta a morte. Os cientistas nos dizem que ele está se expandindo e tudo quanto nele existe distancia-se mutuamente cada vez mais. À medida que isso ocorre, o universo torna-se cada vez mais frio e sua energia se esgota. Finalmente, todas as estrelas se consumirão em chamas e toda matéria se desintegrará em estrelas mortas e buracos negros. Não haverá nenhuma luz. Não haverá nenhum calor. Não haverá nenhuma vida. Somente os cadáveres de estrelas e galáxias mortas, expandindo-se cada vez mais rumo à escuridão infindável e aos frios recessos do espaço — um universo em ruínas. Portanto, não é somente a vida pessoal do indivíduo que está condenada à morte. Toda a raça humana está condenada. Não há escapatória. Não há esperança.
O absurdo da vida sem Deus e a imortalidade
Se Deus não existe, o homem e o universo estão condenados. Como prisioneiros condenados à morte, aguardamos nossa execução inevitável. Não há Deus, e não há imortalidade. Portanto, qual a consequência disso? Significa que a vida em si mesma é um absurdo. Significa que a vida que temos não tem significado, valor nem propósito maiores. Atentemos para cada um desses argumentos.
Não há sentido maior sem a imortalidade e sem Deus
Se a pessoa deixa de existir quando morre, então, que significado supremo pode ser dado a esta vida? Que importância real tem se ela existiu? A vida da pessoa pode ter importância relativa a certos eventos, mas qual é a importância final de qualquer um desses eventos? Se todos os eventos não têm sentido, então que sentido último há em influenciar qualquer um deles? Em última análise, não faz nenhuma diferença.
Veja a questão de outra perspectiva: os cientistas afirmam que o universo se originou de uma explosão denominada big bang, cerca de 13 bilhões de anos atrás. Suponha que o big bang jamais tenha ocorrido. Suponha que o universo jamais existiu. Que diferença essencial isso faria? Seja como for, o universo está condenado a morrer. No fim das contas, não faz nenhuma diferença se alguma vez ele existiu ou não. Logo, o universo não tem nenhum significado maior.
A mesma verdade se aplica à raça humana. A humanidade é uma raça condenada à destruição num universo em processo de morte. Uma vez que a raça humana deixará finalmente de existir, não faz basicamente nenhuma diferença se ela algum dia realmente existiu. A humanidade é, portanto, não mais importante do que um enxame de mosquitos ou uma manada de porcos, pois o fim de todos eles é o mesmo. O mesmo processo cósmico cego que de início os lançou para fora no final os engolirá de novo totalmente.
E a mesma verdade se aplica a cada pessoa. As contribuições dos cientistas para avançar o conhecimento humano, as pesquisas dos médicos para aliviar a dor e o sofrimento, os esforços diplomáticos para assegurar a paz no mundo, os sacrifícios dos homens bons em todos os lugares para melhorar a condição da raça humana — tudo isso resulta em nada. Este é o horror do homem moderno: uma vez que ele termina em nada, o homem não é nada.
É importante perceber que, para que a vida tenha sentido, o homem não precisa apenas de imortalidade. A mera duração da existência não a torna significativa. Caso o homem e o universo pudessem existir para sempre, e não houvesse Deus, a existência deles continuaria sem maior sentido. Para ilustrar: li certa vez um conto de ficção científica em que um astronauta, abandonado em asteroide rochoso e estéril no espaço sideral, tinha consigo duas ampolas, uma com veneno e outra com uma poção que o faria viver para sempre. Compreendendo a sua situação terrível, com um único gole, sorveu o veneno. Mas depois, para seu horror, descobriu que tomara a ampola errada — havia bebido a poção da imortalidade, o que significava que estava amaldiçoado a existir para sempre, numa vida sem sentido e sem fim. Portanto, se Deus não existe, nossa vida é exatamente assim. Poderíamos ainda questionar a vida: “E daí?”. Daí, que não é apenas de imortalidade que o homem precisa, se a vida não tiver nenhum significado maior; ele carece de Deus e de imortalidade. Se Deus não existe, o homem não tem nenhum dos dois.
O homem do século XX chegou a esse entendimento. Basta ler Esperando Godot, de Samuel Beckett. Durante toda essa peça teatral, dois homens conversam banalidades enquanto esperam chegar uma terceira pessoa, que nunca chega. Nossa vida parece com isso, é o que Beckett está dizendo; apenas matamos o tempo esperando — para quê, não sabemos. Numa trágica descrição do homem, Beckett escreveu outra peça teatral em que as cortinas se abrem revelando um palco entulhado de lixo. Durante longos 30 segundos, a plateia silenciosa contempla toda aquela sujeira. Logo o pano cai. É tudo.
Os existencialistas franceses Jean-Paul Sartre e Albert Camus também tiveram a mesma compreensão. Em sua peça Entre quatro paredes, Sartre retratou a vida como o inferno — a fala da última cena são as palavras de resignação: “Pois é, vamos continuar?”. Por isso, noutro livro, Sartre escreve sobre a “náusea” da existência. Camus também via a vida como um absurdo. No final de seu romance O estrangeiro, o herói de Camus percebe de repente que o universo não tem sentido e não existe Deus para dotá-lo de um.
Assim, se Deus não existe, a própria vida torna-se sem sentido. O homem e o universo não têm nenhum significado maior.
Não há valor maior sem a imortalidade e sem Deus
Se a vida acaba na sepultura, não há diferença em viver como um Stálin ou como um santo. Uma vez que, em última análise, o destino pessoal nada tem a ver com comportamento, pode-se também viver como quiser. Como sentenciou Dostoiévski: “Se não há imortalidade, tudo é permitido”. Nesse fundamento, escritores como Ayn Rand estão totalmente corretos ao louvarem as virtudes do egoísmo. Viva totalmente para si, ninguém tem que prestar contas! De fato, seria tolice agir de outra maneira, porque a vida é curta demais para prejudicá-la vivendo por outra razão que não o interesse próprio. Sacrificar-se por outra pessoa seria estúpido. Kai Nielsen, filósofo ateu que tenta defender a viabilidade de uma ética sem Deus, admite no final que:
Não conseguimos mostrar que a razão exige o ponto de vista moral, ou que todas as pessoas realmente racionais, cujos olhos não estão vendados pelo mito ou pela ideologia, não têm necessidade de ser egoístas individuais ou amoralistas clássicos. Aqui, a razão não toma decisões. O quadro que pintei para vocês não é nada agradável. Pensar a respeito dele me deprime [...] A razão pura e prática, mesmo com um bom conhecimento dos fatos, não levará à moralidade.1
Mas o problema torna-se ainda pior. Pois, sem levar em conta a imortalidade, se Deus não existe, não pode haver padrões objetivos para o que é certo e errado. Tudo quanto nos confronta é, nas palavras de Jean-Paul Sartre, o fato nu e sem valor da existência. Valores morais não passam de expressões de gosto pessoal ou de subprodutos da evolução e do condicionamento sociobiológico. Num mundo sem Deus, quem deve dizer quais valores são certos e quais são errados? Quem deve julgar que os valores de Adolf Hitler são inferiores aos valores de um santo? O conceito de moralidade perde todo e qualquer sentido num universo sem Deus. Como mostra certo ateu contemporâneo: “dizer que algo é errado porque [...] é proibido por Deus, é [...] perfeitamente compreensível para quem crê num Deus legislador. Mas dizer que algo é errado [...] embora não exista Deus para proibi-lo, não dá para entender [...]”. “O conceito de obrigação moral [é] ininteligível sem a ideia de Deus. As palavras permanecem, mas o seu sentido se foi”.2 Num mundo sem Deus, não é possível haver certo e errado, somente nossos julgamentos subjetivos, cultural e pessoalmente relativos. Isso significa que é impossível condenar como maus a guerra, a opressão ou o crime. Nem é possível enaltecer como bons a fraternidade, a igualdade e o amor. Pois, num universo sem Deus, não existe bem nem mal — há exclusivamente os fatos nus e sem valor da existência, e ninguém para dizer que você está certo e eu, errado.
Não há propósito maior sem a imortalidade e sem Deus
Se a morte está em pé com os braços abertos no final da trilha da vida, qual é o objetivo da vida? É tudo vão? Existe razão para a vida? E quanto ao universo? Não tem nenhum sentido? Se o destino dele for a sepultura gelada nos recessos do espaço sideral, a resposta só poderá ser: sim, não tem sentido nenhum. Os detritos de um universo morto prosseguirão tão somente se expandindo cada vez mais, para sempre.
E quanto ao homem? Há mesmo algum propósito para a existência da raça humana? Vai simplesmente desaparecer algum dia, perdida no esquecimento de um universo indiferente? O escritor inglês H. G. Wells anteviu esse panorama. Em seu romance A máquina do tempo, o viajante do tempo criado por Wells segue rumo ao futuro distante para descobrir o destino do homem. Tudo que encontra é uma terra morta, exceto por alguns líquens e musgos, orbitando em torno de um gigantesco sol vermelho. Os únicos sons são o do vento soprando e a gentil ondulação do mar. “Além desses sons destituídos de vida”, escreve Wells, “o mundo estava em silêncio. Em silêncio? Seria difícil transmitir a sua imobilidade. Todos os sons produzidos pelo homem, o balido das ovelhas, o trilado das aves, o zumbido dos insetos, a agitação que compõe o cenário de nossa vida — tudo isso se acabara”.3 E, assim, o viajante do tempo de Wells retornou. Mas voltou para onde? — para um mero ponto anterior à corrida despropositada rumo ao esquecimento. Quando, como não cristão, li esse livro pela primeira vez, pensei: “Não, não! Não pode terminar desse jeito!”. Mas, se Deus não existe, terminará assim, gostem ou não. Esta é a realidade num universo sem Deus: não existe esperança; não existe propósito.
O que é verdade para a humanidade toda também o é para cada um de nós individualmente: estamos aqui sem nenhum propósito. Se Deus não existe, nossa vida não é qualitativamente diferente da vida de um cão. Conforme escreveu o antigo autor de Eclesiastes: “O que acontece com os homens é o mesmo que acontece com os animais; a mesma coisa acontece para ambos. Assim como um morre, morre também o outro. Todos têm o mesmo fôlego de vida. O homem não tem vantagem sobre os animais. Tudo é ilusão. Todos vão para o mesmo lugar; todos são pó e todos retornarão ao pó” (Ec 3.19-20). Nesse livro, cujo texto parece mais uma peça literária existencialista moderna do que um livro da Bíblia, o escritor mostra a futilidade do prazer, da riqueza, da educação, da notoriedade política e da honra numa vida condenada a terminar na morte. Seu veredicto? “Que grande ilusão! Que grande ilusão! Tudo é ilusão!” (Eclesiastes 1.2). Se a vida acaba na sepultura, não temos nenhum propósito maior para viver.
Mas mais do que isso: ainda que a vida não terminasse na morte, sem Deus, ela continuaria sem propósito. Porque o homem e o universo seriam, portanto, meros acidentes do acaso, empurrados na existência sem razão alguma. Sem Deus, o universo é o resultado de um acidente cósmico, de uma explosão por acaso. Não há razão para que exista. Quanto ao homem, é uma aberração da natureza, produto cego de matéria mais tempo mais acaso. O homem não passa de um bocado de lodo que evoluiu racionalmente. Como expressou certo filósofo: “A vida humana está montada em cima de um pedestal subumano e tem de lutar pela vida sozinha no coração de um universo silencioso e estúpido”.4
O que é verdade para universo e para a raça humana também é verdade para nós como indivíduos. Se Deus não existe, você é somente um aborto da natureza, lançado num universo despropositado para viver uma vida sem propósito.
Portanto, se Deus não existe, significa que o homem e o universo existem sem nenhum propósito — já que o fim de tudo é a morte — e passaram a existir sem nenhum objetivo, uma vez que são apenas frutos do mero acaso. Resumindo, a vida não tem absolutamente nenhuma razão de ser.
É possível entender a gravidade das alternativas diante de nós? Porque, se Deus existe, há esperança para o homem. Mas, se Deus não existe, tudo que nos resta é o desespero. É possível entender por que a questão da existência de Deus é tão vital para o homem? Como escreveu apropriadamente certo autor: “Se Deus está morto, o homem também está morto”.
Infelizmente, o grosso da humanidade não percebe tal fato. Os homens continuam vivendo como se nada tivesse mudado. Vem-me à memória o conto do louco de Nietzsche que, nas primeiras horas da manhã, irrompeu na praça do mercado, empunhando uma lanterna, gritando: “Procuro Deus! Procuro Deus!”. Como muitos dos circunstantes não acreditavam em Deus, ele provocou muitas risadas. “Será que Deus se perdeu?”, provocaram-no com sarcasmo. “Ou, quem sabe, está se escondendo? Ou talvez partiu em viagem ou emigrou!”. Assim gritavam e gargalhavam. Então, escreve Nietzsche, o louco se lançou entre eles e trespassou-os com seu olhar:
“Aonde foi Deus?”, gritou ele. “Já lhes direi! Nós o matamos — vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte inteiro? Que fizemos, ao desprender a corrente que prendia esta terra ao seu sol? Para onde se move ela agora? Para longe de todos os sóis? Não estamos nos arrojando continuamente? Para trás, para os lados, para frente, em todas as direções? Restou ainda algum “para cima” ou “para baixo”? Não estaríamos vagando como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do espaço vazio? Não se tornou ele mais frio? Não sobrevém noite e mais noite o tempo todo? Será que não é preciso acender as lanternas logo de manhã? Acaso ainda não ouvimos o barulho dos coveiros que estão sepultando Deus? [...] Deus está morto! [...] E nós o matamos! Como nós, assassinos de todos os assassinos, consolaremos a nós mesmos?5
A multidão, silenciosa e estarrecida, contemplava fixamente o louco. Por fim, ele atirou sua lanterna ao chão. “Cheguei cedo demais”, lamentou. “Esse evento tremendo ainda está a caminho, não chegou ainda aos ouvidos do homem”. Os homens não compreendem de fato as consequências do que fizeram ao matar Deus. Mas Nietzsche predisse que algum dia as pessoas compreenderiam as implicações do ateísmo delas; e essa compreensão conduziria a uma era de niilismo: a destruição de todo sentido e valor da vida.
A maioria das pessoas não pensa nas consequências do ateísmo e, assim, como a multidão da praça do mercado, continua a viver inadvertidamente. Mas, quando compreendemos, assim como Nietzsche, qual a implicação do ateísmo, a seguinte pergunta nos oprime: como nós, assassinos de todos os assassinos, consolaremos a nós mesmos?
A impossibilidade prática do ateísmo
A única solução que os ateus conseguem nos oferecer é que devemos encarar o absurdo da vida e viver corajosamente. Bertrand Russell, por exemplo, escreveu que temos de edificar a nossa vida sobre “o firme alicerce do desespero inabalável”.6 Somente reconhecendo que o mundo é de fato um lugar terrível podemos entrar num acordo eficaz com a vida. Camus chegou à conclusão de que deveríamos reconhecer honestamente o absurdo que é a vida e, então, viver em amor mútuo.
Mas o problema fundamental dessa estrutura é a impossibilidade de viver de modo coerente e feliz nessa visão de mundo. Se alguém vive coerentemente, não será feliz; se vive feliz, é só porque não é coerente. Francis Schaeffer apresentou uma boa explicação para essa condição. O homem moderno, afirma Schaeffer, habita um universo com dois andares. No andar de baixo, está o mundo finito sem Deus; aqui a vida é absurda, como já vimos. No andar de cima, há sentido, valor e propósito. Todavia, o homem moderno vive no andar de baixo, pois acredita que Deus não existe. Ele não consegue ter uma vida feliz nesse mundo tão absurdo; por isso, sempre dá saltos de fé até o andar de cima para afirmar sentido, valor e propósito, mesmo não tendo esse direito, já que não acredita em Deus.
Vamos, portanto, examinar uma vez mais cada uma das três áreas na qual vimos que a vida sem Deus é absurda, a fim de mostrar como o homem não pode levar uma vida coerente e feliz com o seu ateísmo.
O sentido da vida
Primeiramente, a área do sentido. Já vimos que, sem Deus, a vida não tem sentido. No entanto, os filósofos continuam a viver como se a vida tivesse sentido. Por exemplo, Sartre defendia que é possível dar sentido à vida quando se escolhe livremente seguir certo curso de ação. Sartre, por sua vez, optou pelo marxismo.
Ora, isso é absolutamente incoerente. Não é coerente afirmar que a vida é objetivamente absurda e depois alegar que é possível criar sentido para a própria vida. Se a vida é absurda de fato, o homem está aprisionado no andar de baixo. Tentar criar sentido para a vida representa um salto até o andar superior. Mas Sartre não tem nenhum apoio para dar esse salto. Sem Deus, não pode haver significado objetivo na vida. Na verdade, o programa de Sartre é exercício de autoengano. O que ele está dizendo mesmo é: “Vamos fazer de conta que o universo tem sentido”. Isso é apenas nos fazer de tolos.
A questão é: se Deus não existe, a vida é objetivamente sem sentido; porém, o homem não consegue viver de maneira coerente e feliz sabendo que a vida não tem sentido; assim, para ter felicidade, ele finge que a vida tem sentido. Mas, é óbvio, isso é incoerência total, pois, sem Deus, homem e universo não têm nenhuma importância real.
O valor da vida
Abordamos agora o problema do valor. É aqui que ocorre a incoerência mais flagrante. Antes de tudo, os humanistas ateus são totalmente incoerentes quando defendem os valores tradicionais de amor e fraternidade. É com acerto que Camus tem sido criticado pela sua incoerência em prender-se tanto ao absurdo da vida como à ética do amor e da fraternidade humanos. Os dois são logicamente incompatíveis. Bertrand Russell também foi incoerente. Conquanto fosse ateu, era crítico social declarado, denunciando a guerra e as restrições à liberdade sexual. Russell admitia que não poderia viver como se os valores éticos fossem mera questão de gosto pessoal e, portanto, achava suas próprias visões “inacreditáveis”. “Não sei a solução”, confessava.7 A dificuldade é que, se Deus não existe, não pode existir certo e errado objetivos. Como declarou Dostoiévski: “Tudo é permitido”.
Mas Dostoiévski mostrou também que o homem não pode viver dessa maneira. Não pode viver como se fosse perfeitamente certo soldados matarem crianças inocentes. Não pode viver como se fosse certo que ditadores, como Pol Pot, exterminassem milhões de seus próprios compatriotas. Tudo no homem denuncia esses atos como errados, absolutamente errados. Mas, se Deus não existe, o homem não tem por que reclamar. Por isso, ele dá um salto de fé e, de qualquer forma, defende a existência de valores. Agindo assim, ele revela a insuficiência de um mundo sem Deus.
O horror a um mundo desprovido de valores tornou-se patente para mim com maior intensidade alguns anos atrás ao assistir no canal de televisão da BBC a um documentário denominado “The Gathering” [A reunião]. A reportagem documenta uma reunião, em Jerusalém, de sobreviventes do Holocausto, na qual reencontram amizades perdidas e partilham suas experiências. Uma prisioneira enfermeira contou como a fizeram de ginecologista em Auschwitz. Ela percebeu que as grávidas tinham sido reunidas num grupo por soldados comandados pelo Dr. Mengele e alojadas nos mesmos barracões. Depois de algum tempo, notou que não via mais nenhuma daquelas mulheres. Ela passou a investigar. “Onde estão as grávidas que estavam alojadas naqueles barracões?”. “Você não ouviu?”, responderam-lhe. “Dr. Mengele usou-as para vivissecção”.
Outra mulher descreveu como Mengele lhe enfaixara os seios para que ela não pudesse amamentar seu recém-nascido. O doutor queria saber quanto tempo um recém-nascido sobrevive sem se alimentar. Desesperada, a pobre mãe tentou manter seu bebê vivo dando-lhe pedacinhos de pão embebidos em café, mas era inútil. Cada dia a criança perdia peso, fato monitorado avidamente pelo Dr. Mengele. Uma enfermeira procurou a mulher em segredo e disse-lhe: “Veja, arranjei um jeito de você dar o fora daqui, mas não poderá levar o bebê consigo. Trouxe uma injeção de morfina para que aplique na criança e lhe tire a vida”. Quando a mulher protestou, a enfermeira foi insistente: “Olhe, de qualquer maneira, a criança vai morrer. Pelo menos salve a si mesma”. E, assim, essa mãe tirou a vida do próprio bebê. Dr. Mengele ficou furioso quando soube do ocorrido, porque tinha perdido seu espécimen experimental; procurou, então, entre os mortos o cadáver descartado da criança para realizar uma última pesagem.
Meu coração ficou dilacerado por causa desses relatos. Certo rabino que sobreviveu ao campo de concentração resumiu tudo muito bem quando disse que, em Auschwitz, era como se existisse um mundo no qual todos os Dez Mandamentos fossem invertidos. A humanidade jamais vira tamanho inferno.
Todavia, se Deus não existe, então, em certo sentido, o nosso mundo é Auschwitz: não existe absolutamente certo e errado; tudo é permitido. Mas nenhum ateu, nenhum agnóstico, consegue viver coerentemente com essa visão. O próprio Nietzsche, que proclamou a necessidade de viver para além do bem e do mal, rompeu com o seu mentor, Richard Wagner, exatamente por causa do antissemitismo e nacionalismo germânico exacerbados desse compositor. Sartre, igualmente, ao escrever na esteira da II Guerra Mundial, condenou o antissemitismo, declarando que uma doutrina que leva ao extermínio não é mera questão de opinião e gosto pessoal, com igual valor a seu oposto.8 Em seu importante artigo “O existencialismo é um humanismo”, Sartre luta inutilmente para esquivar-se da contradição entre a sua negação de valores divinamente preestabelecidos e seu insistente desejo de defender a existência de valores das pessoas humanas. À semelhança de Russell, ele não conseguiria viver com as implicações da própria negação de absolutos éticos.
Um segundo problema é que, se Deus não existe e não há imortalidade, todas as maldades praticadas pelos homens ficam impunes e todos os sacrifícios dos homens bons, sem recompensa. Mas quem consegue viver com tal perspectiva? Richard Wurmbrand, que, por causa da sua fé, foi torturado nas prisões comunistas, conta:
É difícil de acreditar na crueldade do ateísmo, no qual o homem não tem fé na recompensa do bem nem no castigo do mal. Não há razão para ser humano. Não há limites para as profundezas do mal que há no homem. Os torturadores comunistas diziam sempre: “Não há Deus, não há vida futura, não há castigo para o mal. Podemos fazer o que quisermos”. Certa vez ouvi um torturador dizer: “Dou graças a Deus, em quem não creio, por ter vivido até agora, quando posso expressar toda a maldade do meu coração”. Ele a expressava com brutalidade e tortura inacreditáveis infligidas aos prisioneiros.9
O mesmo se aplica aos atos de autossacrifício. Alguns anos atrás, houve um terrível acidente aéreo em pleno inverno no qual um avião vindo do aeroporto de Washington, D.C. (EUA), chocou-se com uma ponte sobre o rio Potomac, lançando seus passageiros na água gelada. Ao chegarem os helicópteros de resgate, chamou-se a atenção para um homem que sempre empurrava a escada de cordas para os outros passageiros em vez de ele mesmo ser puxado para a segurança do helicóptero. Por seis vezes ele passou a escada adiante. Quando o resgate retornou, ele já partira. Ele havia dado gratuitamente a vida para que outros pudessem viver. O país inteiro voltou os olhos para esse homem com respeito e admiração por causa da atitude altruísta e bondosa que ele realizara. Mas, se o ateu estiver certo, esse homem não agiu com nobreza; antes, fez a coisa mais estúpida que se podia fazer. Ele devia ter sido a primeiro a subir pela escada, afastando os outros, se necessário, para que pudesse sobreviver. Mas morrer por outros que ele sequer conhecia, abrir mão de toda a breve existência que poderia ter, para quê? Para o ateu, não pode haver nenhuma razão. E, todavia, o ateu, como o restante de nós, reage louvando a ação desprendida daquele homem. De fato, provavelmente nunca será possível algum ateu que viva de modo coerente com o seu sistema. Porque um universo em que não existe responsabilidade moral, sendo desprovido de valores, é inimaginavelmente terrível.
O propósito da vida
Finalmente, vamos examinar o problema do propósito da vida. A única maneira de quem nega a existência de propósito na vida levar uma vida feliz é criar algum propósito passo a passo — o que redunda em autoengano, como vimos em Sartre — ou deixar de levar a própria visão às suas conclusões lógicas. Considere-se o problema da morte, por exemplo. De acordo com Ernst Bloch, o único modo de o homem moderno viver diante da morte é tomando emprestada de modo subconsciente a crença na imortalidade na qual seus antepassados se apegavam, apesar de ele mesmo não ter fundamento nenhum para isso, porquanto não acredita em Deus. Ao tomar emprestados os resíduos de uma crença na imortalidade, escreve Bloch, “o homem moderno não percebe o precipício que o rodeia e que, com certeza, no final o tragará. Por meio desses resíduos, ele preserva seu senso de autoidentidade e deles surge a impressão de que o homem não está perecendo, mas somente que algum dia o mundo caprichosamente não lhe aparecerá mais”. Bloch conclui: “Essa coragem bastante rasteira vai às compras com um cartão de crédito emprestado. Vive à custa das esperanças antigas e do amparo que outrora concediam”.10 O homem moderno não tem mais nenhum direito a esse amparo, já que rejeita a Deus. Mas, para viver a vida com um propósito, ele dá um salto de fé a fim de assegurar uma razão para viver.
Quase sempre encontramos a mesma inconsistência entre os que defendem que o homem e o universo vieram à existência sem nenhuma razão ou propósito, mas exclusivamente por acaso. Incapazes de viverem num universo impessoal, em que tudo é resultado do mero acaso, tais pessoas passam a atribuir personalidade e motivos aos próprios processos físicos. É um modo bizarro de falar e de representar o salto do andar de baixo para o de cima. Por exemplo, Francis Crick mais ou menos na metade de seu livro The Origin of the Genetic Code [A origem do código genético] passa a grafar natureza com a inicial maiúscula “N”, e por todo o livro refere-se à seleção natural como sendo “inteligente”, como se “pensasse” naquilo que fará. O astrônomo inglês Fred Hoyle atribui ao universo as qualidades de Deus. Para Carl Sagan, o “Cosmos”, que ele escreve sempre com inicial maiúscula, cumpre obviamente o papel de Deus-substituto. Embora todos esses homens professem não crer em Deus, contrabandeiam um Deus-substituto pela porta dos fundos, porque não suportam viver em um universo em que tudo é o resultado casual de forças impessoais.
Além disso, é interessante ver muitos pensadores traírem suas visões quando são forçados às conclusões lógicas delas. Por exemplo, certas feministas fizerem uma tempestade de protestos contra a psicologia sexual freudiana, pois é machista e degradante para as mulheres. Por isso, alguns psicólogos cederam e alteraram suas teorias. Ora, isso é totalmente inconsistente. Se a psicologia freudiana fosse mesmo verdadeira, não importa se é degradante para as mulheres. Não se pode mudar a verdade por não se gostar daquilo a que ela leva. Mas as pessoas não conseguem viver de modo consistente e feliz num mundo no qual outras pessoas são desvalorizadas. Mas se Deus não existe, ninguém tem valor algum. Somente se Deus existir será possível apoiar coerentemente os direitos das mulheres. Porque, se Deus não existe, a seleção natural determina que o macho da espécie é o elemento dominante e agressivo. A mulher teria o mesmo direito que uma cabra ou uma ave o têm. Na natureza, seja como for, tudo está certo. Mas quem consegue viver de acordo com essa perspectiva? Evidentemente, nem mesmo os psicólogos freudianos, que traem as suas teorias ao ser empurrados para as conclusões lógicas a que elas levam.
Ou considere-se o behaviorismo sociológico de homens como B. F. Skinner. A sua visão resulta no tipo de sociedade vislumbrada no livro 1984, de George Orwell, em que o governo programa e controla a mente de todos. Se as teorias de Skinner estiverem certas, não se pode fazer objeção ao fato de as pessoas serem tratadas como os ratos na caixa de ratos de Skinner, ao abrirem caminho através de seus labirintos atraídos por comida e impulsionados por choques elétricos. De acordo com Skinner, de qualquer forma, todas as nossas ações são determinadas. E, se Deus não existe, não se pode fazer nenhuma objeção moral contra esse tipo de programação, porque o homem não é em termos qualitativos diferente de um rato, uma vez que os dois são apenas matéria mais tempo mais acaso. Novamente, quem consegue viver de acordo com uma visão tão desumanizadora?
Ou, finalmente, considere-se o determinismo biológico de homens como Francis Crick. A conclusão lógica é que o homem não passa de outro espécime qualquer de laboratório. O mundo ficou horrorizado ao saber que, em campos de concentração como o de Dachau, os nazistas usavam os prisioneiros para realizar experiências médicas em seres humanos. Mas por que não? Se Deus não existe, não pode haver nenhuma objeção ao uso de pessoas como cobaias humanas. O fim dessa visão resulta no controle populacional, em que os fracos e indesejados são exterminados para abrir espaço para os mais fortes. Mas só será possível protestarmos coerentemente contra essa visão se Deus existir. Somente se Deus existir pode haver propósito na vida.
O dilema do homem moderno é, portanto, realmente terrível. Na medida em que ele nega a existência de Deus e a objetividade de valor e propósito, esse dilema continua irremediável também para o homem “pós-moderno”. De fato, é precisamente a consciência de que o modernismo resulta inevitavelmente no absurdo e no desespero que compõem a aflição do pós-modernismo. Em alguns aspectos, o pós-modernismo é apenas a consciência da ruína da modernidade. A visão de mundo ateísta é insuficiente para manter uma vida feliz e coerente. O homem não pode viver de modo coerente e feliz, como se, em última análise, a vida não tivesse sentido, valor ou propósito. Se tentarmos viver de maneira coerente segundo a cosmovisão ateísta, nos veremos profundamente infelizes. Se, em vez disso, conseguirmos viver felizes, será somente por desmentir nossa cosmovisão.
Confrontado por esse dilema, o homem debate-se tristemente procurando algum modo de escapar. Em célebre discurso à Academia Americana para o Avanço da Ciência, em 1991, Dr. L. D. Rue, desafiado pela difícil situação do homem moderno, teve a ousadia de advogar que devíamos nos enganar com alguma “Mentira Nobre” que nos faça pensar que nós e o universo ainda temos valor.11 Com a alegação de que “os últimos dois séculos nos ensinam que o relativismo intelectual e moral são a única opção”, Dr. Rue imagina em seu devaneio que, em consequência dessa compreensão, a busca do homem pela plenitude pessoal (ou autorrealização) e a procura pela coerência social tornam-se independentes uma da outra. É assim porque, segundo a perspectiva relativista, a busca da autorrealização torna-se radicalmente privatizada: cada um escolhe seu próprio conjunto de valores e de sentido. Se quisermos evitar “a opção do manicômio”, pela qual se procura alcançar a autorrealização a despeito da coerência social, e “a opção totalitária”, pela qual tal coerência é imposta à custa da integridade pessoal, então, não temos escolha senão adotar alguma Mentira Nobre que nos inspire a viver além de interesses egoístas e assim alcancemos a coerência social. Mentira Nobre “é aquela que nos engana, nos ilude, nos compele a viver além do interesse em nós mesmos, além do próprio eu, de família, nação [e] raça”. É uma mentira porque nos diz que o universo está carregado de valor (o que é uma grande ficção), porque apela a uma verdade universal (apesar de não existir nenhuma) e porque nos impele a não viver pelo interesse em nós mesmos (o que é notoriamente falso). “Mas, sem essas mentiras, não conseguimos viver”.
É esse o veredicto que paira sobre o homem moderno. Para sobreviver, ele tem de viver em autoengano. Até mesmo a Mentira Nobre, no final, é impraticável. Para ser feliz, é preciso acreditar em sentido, propósito e valor objetivos. Como é possível acreditar nessas Mentiras Nobres e, ao mesmo tempo, acreditar no ateísmo e no relativismo? Quanto mais se está convencido da necessidade de uma Mentira Nobre, menos se acredita nela. Semelhante ao placebo, a Mentira Nobre só funciona em quem acredita que ela é verdadeira. Tão logo se perceba a ficção, a mentira perde seu poder sobre nós. Assim, ironicamente, a Mentira Nobre não é capaz de resolver a enrascada humana para quem perceba essa situação embaraçosa.
A Mentira Nobre, portanto, na melhor hipótese, leva à sociedade em que um grupo elitista de illuminati, em benefício próprio, engana as massas com a perpetuação da Mentira Nobre. Por que, então, os iluminados que há entre nós seguem as massas enganadas? Por que deveríamos sacrificar o interesse pessoal em troca de uma ficção? Se a grande lição dos dois últimos séculos é o relativismo moral e intelectual, então, por que (se nos fosse possível) fingimos que não conhecemos tal verdade e, por isso, vivemos uma mentira? Se responderem: “por causa da coerência social”, seria legítimo perguntar por que deveria eu sacrificar meu interesse próprio em favor da coerência social? A única resposta que o relativista pode dar é que a coerência social está em meu interesse próprio. Mas o problema dessa resposta é que o interesse próprio e o interesse do grupo nem sempre coincidem. Além disso, se (por causa do interesse próprio) eu realmente ligo para a coerência social, a opção totalitária está sempre à minha disposição: esqueçam a Mentira Nobre e preservem a coerência social (como também minha autorrealização) à custa da integridade pessoal das massas. Sem dúvida, Rue consideraria essa opção repugnante. Aí está a dificuldade. É evidente que o dilema de Rue está em sua valorização profunda tanto da coerência social quanto da integridade pessoal por si próprias. Noutras palavras, elas são valores objetivos que, segundo essa filosofia, nem mesmo existem. Ele já deu um salto para o andar de cima. Assim, a opção da Mentira Nobre afirma aquilo que nega e, logo, contradiz a si mesma.
O sucesso do cristianismo bíblico
Se o ateísmo é um fracasso nesse sentido, o que dizer do cristianismo bíblico? De acordo com a cosmovisão cristã, Deus existe, e a vida do homem não termina na sepultura. No corpo ressurreto, o homem poderá gozar da vida eterna e da comunhão com Deus. O cristianismo bíblico, portanto, proporciona ao homem as duas condições necessárias a uma vida com sentido, valor e propósito: Deus e imortalidade. Por causa desses dois, podemos viver de maneira coerente e feliz. Então, o cristianismo bíblico é vitorioso exatamente no ponto em que o ateísmo fracassa.
Conclusão
Quero, agora, deixar claro que ainda não demonstrei que o cristianismo bíblico é verdadeiro. O que fiz foi explicitar as alternativas. Se Deus não existe, a vida é fútil. Se o Deus da Bíblia existe, a vida tem sentido. Somente a segunda dessas duas alternativas capacita-nos a viver felizes e coerentemente. Assim, tenho a impressão de que, mesmo se as evidências dessas duas opções fossem absolutamente iguais, uma pessoa racional escolheria o cristianismo bíblico. Parece-me decididamente irracional preferir morte, futilidade e destruição da vida, em vez de uma vida com sentido e felicidade. Como disse Pascal, não temos nada para perder e o infinito para ganhar.
1 Kai Nielsen, “Why Should I Be Moral?”, American Philosophical Quarterly 21 (1984): 90.
2 Richard Taylor, Ethics, Faith, and Reason (Englewood Cliffs, NJ: Prentice Hall, 1985), 90, 84.
3 H. G. Wells, The Time Machine (Nova Iorque: Berkeley, 1957), cap. 11 [publicado em português com o título A máquina do tempo, em diversas traduções e edições].
4 W. E. Hocking, Types of Philosophy (Nova Iorque: Scribner’s, 1959), 27.
5 Friedrich Nietzsche, “The Gay Science”, in The Portable Nietzsche, org. e trad. W. Kaufmann (Nova Iorque: Viking, 1954), p. 95 [publicado em português com o título A gaia ciência, em diversas traduções e edições].
6 Bertrand Russell, “A Free Man’s Worship”, in Why I Am Not a Christian, org. P. Edwards (Nova Iorque: Simon & Schuster, 1957), p. 107 [publicado em português com o título Por que não sou cristão. Porto Alegre: L&PM, 2008].
7 Bertrand Russell, carta a Observer, 06 de outubro de 1957.
8 Jean Paul Sartre, “Portrait of the Antisemite”, in Existentialism from Dostoyevsky to Sartre, ed. rev., org. Walter Kaufmann (Nova Iorque: New Meridian Library, 1975), p. 330.
9 Richard Wurmbrand, Tortured for Christ (Londres: Hodder & Stoughton, 1967), p. 34 [publicado em português com o título Torturado por amor a Cristo. São Paulo: A. D. Santos, 1998].
10 Ernst Bloch, Das Prinzip Hoffnung, 2.ed., 2 vols. (Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1959), 2:360-361 [publicado em português com o título O princípio esperança, 3 vols. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005].
11 Loyal D. Rue, “The Saving Grace of Noble Lies”, discurso à Academia Americana para o Avanço da Ciência, fevereiro de 1991.
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