O conflito entre a liberdade
humana e a presciência divina
Mas se Deus não decretou desde a eternidade tudo o que acontecerá, como
lhe é possível ter conhecimento, desde a eternidade, de tudo o que acontece?
Será que a doutrina da presciência divina não pressupõe a doutrina da
predestinação divina?
Decretar que algo vai acontecer num determinado momento seria uma
maneira de Deus saber de antemão que isso acontecerá. Mas não é a única maneira
de Deus poder tertido tal conhecimento. Temos telescópios, por exemplo, que nos
permitem saber o que acontece em lugares distantes, porque através do
telescópio podemos vê‐los acontecer.
Imagine‐se que Deus tem algo
semelhante a um telescópio temporal, um telescópio que permite ver o que
acontece em tempos distantes. Girando as lentes foca‐se uma determinada época, digamos, à distância de mil anos no futuro, e
vê‐se os acontecimentos que
ocorrem nessa época. Com esta imagem, podemos explicar a presciência de Deus
sem supor que o seu conhecimento deriva de ter anteriormente decretadoque os
acontecimentos em causa ocorrerão. Deus conhece de antemão os acontecimentos
que ocorrerão antevendo‐os e não
predestinando‐os. A doutrina da
presciência divina, portanto, não pressupõe a doutrina da predestinação divina.
E, como vimos, não parece haver qualquer conflito entre a presciência divina e
a liberdade humana.
Pois embora a predestinação de algo por Deus imponha a ocorrência desse
algo, a presciência que Deus tem de algo não impõe a sua ocorrência. Não é por
Deus saber as coisas de antemão que elas ocorrem; ao invés, é por elas
ocorrerem que Deus tem delas presciência.
Infelizmente, as coisas não são assim tão simples. Há um problema grave
acerca da presciência divina e da liberdade humana. E embora talvez não sejamos
capazes de o resolver, será instrutivo tentar compreendê‐lo e ver que diversas «soluções» foram apresentadas
por importantes filósofos e teólogos. Talvez a melhor maneira de começar seja
apresentar o problema na forma de um argumento — um argumento que começa com a
doutrina da presciência divina e termina com a negação da liberdade humana.
Quando compreendermos as principais premissas do argumento, bem como as razões
dadas a seu favor, teremos compreendido um dos maiores problemas com que os
teólogos se têm defrontado desde há quase dois mil anos: o problema de
reconciliar a doutrina da presciência divina com a crença na liberdade humana.
1. Deus sabe antes de nascermos tudo o que faremos.
2. Se Deus sabe antes de nascermos tudo o que faremos, então nunca está
em nosso poder agir de outra maneira.
3. Se nunca está em nosso poder agir de outra maneira, então não há
liberdade humana.
Logo,
4. Não há liberdade humana.
A primeira premissa do argumento exprime uma aparente consequência da
doutrina da presciência divina. A terceira premissa afirma apenas uma
consequência da segunda ideia de liberdade, que já considerámos. Segundo essa
ideia, só fazemos algo livremente se, no momento imediatamente antes, está em
nosso poder agir de outra maneira. Assim, concluímos que o acto de ficar no
quarto só é livre se, no momento da decisão de ficar no quarto, a pessoa tem
como agir de outra maneira — isto é, pode abandonar o quarto. Como a porta foi
firmemente trancada a partir do exterior, concluímos que a pessoa não
permaneceu livremente no quarto. A premissa 3 apenas retira a conclusão lógica
a partir desta segunda ideia de liberdade: se nunca está no nosso poder (no
poder de qualquer ser humano) agir de outra maneira, então não há liberdade
humana. Como o argumento é claramente válido, a questão pendente diz respeito à
premissa 2: se Deus sabe antes de nascermos tudo o que vamos fazer, então nunca
está em nosso poder agir de outra maneira. Por que devemos aceitar esta
premissa? É evidente que se colocássemos a palavra predestina em lugar da
palavra sabe a afirmação seria verdadeira. Mas o propósito de abandonar a
predestinação divina a favor da presciência divina foi que embora
a) Se Deus predestinar antes de nascermos tudo o que faremos, então
nunca está em nosso poder agir de outra maneira. pareça seguramente verdadeira,
não parece verdade que
b) Se Deus souber antes de nascermos tudo o que faremos, então nunca
está em nosso poder agir de outra maneira.
Como a premissa 2 é a mesma que b, por que razão devemos aceitar a sua
verdade?
Quais são as razões pelas quais o defensor deste argumento espera
convencer‐nos de que 2 é verdadeira?
A premissa 2 é sustentada por um raciocínio complexo, pelo que será
melhor desenvolvê‐lo através de um
exemplo. Suponhamos que são 14 horas numa certa Terça‐feira e que o leitor tem uma aula de filosofia da religião que começa às
14:30. Os seus amigos pedem‐lhe que vá com
eles ao cinema, à tarde mas, após considerar a proposta, o leitor consegue de
alguma maneira resistir à tentação e decide assistir à aula em vez e ir ao
cinema. São agora 14:45 e o professor discorre acerca da presciência e do livre‐arbítrio. Algo aborrecido, o leitor deseja agora ter
ido ver o filme em vez de
ter vindo assistir à aula. Apercebe‐se, contudo, que apesar de lamentar agora a sua decisão, nada pode
fazer. Claro que pode levantar‐se e apressar‐se para ver o resto do filme. Mas não pode agora, às
14:45, fazer que não tivesse ido à aula às 14:30, não pode agora fazer com que
na verdade tenha ido ver o filme, ao invés. Pode lamentar o que fez e decidir
nunca cometer novamente o mesmo erro mas, quer queira quer não, está agora a
braços com o facto de terido à aula às 14:30, em vez de terido ver o filme.
Está a braços com este facto porque é um facto acerca do passado e o passado
não está em nosso poder. A nossa incapacidade de alterar o passado é captada pelo
coloquialismo
«Não adianta chorar sobre o leite derramado». Até certo ponto, contudo,
o futuro parece aberto, maleável; podemos fazer que seja de uma maneira ou
outra. O leitor acredita que, por exemplo, na Quinta‐feira, quando houver outra aula, estará em seu poder ir à aula ou, em
vez disso, ir a um cinema. Mas o passado não está aberto, está fechado, sólido
como granito, e não está de modo algum em seu poder alterá‐lo. Como Aristóteles observou, ninguém delibera acerca
do passado mas apenas acerca do futuro e do que pode ser de outra maneira, mas
o passado não pode deixar de ter ocorrido; portanto, tem razão Agathon ao
afirmar: «Pois só isto está ausente, mesmo em Deus: tornar inocorridas as coisas
que já ocorreram». 2 Há evidentemente uma grande quantidade de factos acerca do
passado relativamente às 14:45 de Terça‐feira. Além do facto de que às 14:30 o leitor foi à aula, há o facto de
ter nascido, o facto de se tertornado estudante universitário, o facto de terem
ocorrido duas guerras mundiais no século XX — na verdade, todos os factos da
história anterior. E o leitor agora sabe que às 14:45 não está em seu poder
alterar quaisquer destes factos. Nada do que possa fazer agora é tal que, caso
o fizesse, qualquer destes factos acerca do passado deixaria de ser um facto
acerca do passado. Ponderando na sua impotência relativamente ao passado, o
leitor repara que o professor escreveu no quadro outro facto acerca do passado:
F. Antes de vocês terem nascido Deus sabia que viriam à aula às 14:30
esta Terça‐feira. Se Deus existe e a
doutrina da presciência divina é verdadeira, F é seguramente um facto acerca do
passado, e foi um facto acerca do passado em todos os momentos da vida do
leitor. É um facto acerca do passado agora, às 14:45 de Terça‐feira; era um facto acerca do passado ontem; e será um
facto acerca do passado amanhã. Nesse momento, o professor volta‐se e pergunta: «Estaria em vosso poder às 14:00 terem‐se baldado à aula de hoje?» O leitor pensa seguramente
que sim — na verdade, lamenta agora não ter exercido esse poder — pelo que o
professor escreve no quadro:
A. Estava em vosso poder às 14:00 fazer outra coisa que não vir à aula
às 14:30 esta Terça‐feira.
Mas agora pensemos um pouco em F e em A. Às 14:00, F é um facto acerca
do passado. Mas de acordo com A, estava em seu poder às 14:00 fazer algo (por
exemplo, irao cinema)tal que se o fizesse, algo que é um facto acerca do
passado (F) não seria um facto acerca do passado. Pois, como é evidente, se o
leitor tivesse exercido o seu poder de se baldar à aula às 14:30, aquilo que
Deus sabia antes de o leitor ter nascido não seria aquilo que efectivamente
sabe — que o leitoriria à aula nessa Terça‐feira — mas algo muito diferente: que faria outra coisa. E isto por sua
vez significa que se F é um facto acerca do passado — como seguramente é, no
caso de a doutrina da presciência divina ser verdadeira — e se A é verdadeira,
então estava em seu poder às 14:00 dessa Terça‐feira alterar o passado; estava em seu poderfazer algo (ir ao cinema)tal
que se o fizesse, o que é um facto acerca do passado (F) não seria um facto
acerca do passado.
Se, portanto, o passado nunca está em seu poder, não pode dar‐se o caso de F ser um facto acerca do passado e
estartambém em seu poder às 14:00 baldar‐se à aula às 14:30 dessa Terça‐feira.
Acabámos de ver que, dada a doutrina da presciência divina e a afirmação
de que está em nosso poder ter feito algo que não fizemos, segue‐se que o passado está em nosso poder. Pois dada a
doutrina da presciência divina segue‐se que antes de o
leitor ter nascido Deus sabia que o leitor iria à aula às 14:30 esta Terça‐feira. E se agora afirmamos que às 14:00 estava em
nosso poder ter feito outra coisa, estamos a pressupor que às 14:00 estava em
seu poder agir de tal modo que antes de ter nascido Deus não sabia que o leitor
iria assistir à aula às 14:30. Mas tínhamos concluído que os factos acerca do
passado não estão em nosso poder. Se mantivermos esta convicção — como parece
que temos de fazer —então temos de concluir que se Deus não sabia antes de o leitor
nascer que iria à aula às 14:30 (esta Terça‐feira), então não estava em seu poder às 14:00 agir de outra maneira. E,
generalizando a partir deste exemplo particular, podemos concluir que se o
passado nunca está em nosso poder, então, se Deus sabe antes de nascermos tudo
o que faremos, nunca está em nosso poder agir de outra maneira.
Abrimos caminho a custo, através do raciocínio complexo que se pode usar
para sustentar a premissa 2 do argumento concebido para defender o conflito
entre a presciência divina e a liberdade humana. Essa premissa, como o leitor
se recorda, afirma que se Deus sabe antes de nascermos tudo o que faremos,
então nunca está em nosso poder agir de outra maneira. Na sua formulação mais
simples, o raciocínio apresentado a favor da premissa 2 consiste em argumentar
que se 2 não é verdadeira, então temos poder sobre o passado. Mas como o
passado não está em nosso poder, 2 tem de ser verdadeira. De
I. Deus sabe antes de nascermos tudo o que faremos; e
II. Por vezes está em nosso poder agir de outra maneira, segue‐se, de acordo com esse raciocínio, que por vezes está
em nosso poder determinar o passado. Como nunca está em nosso poder determinar
o passado, as premissas I e II não podem ambas ser verdadeiras. Portanto, se I
é verdadeira, então II é falsa. Mas afirmar que I é falsa é apenas afirmar que
nunca está em nosso poder agir de outra maneira. Assim, se I é verdadeira, então
nunca está em nosso poder agir de outra maneira —e isto é exactamente o que
afirma a premissa 2. Algumas soluções para o conflito, estivemos a ver o que
talvez seja o argumento mais forte a favor da perspectiva de que a doutrina da
presciência divina, tal como a doutrina da predestinação divina, entra
fundamentalmente em conflito com a crença na liberdade humana, um argumento que
perturbou os filósofos e os teólogos durante séculos. Chegou a altura de considerar
as diversas «soluções» que foram apresentadas e avaliar os seus pontos fortes e
fracos.
O próprio argumento limita o número de soluções possíveis às quatro
seguintes:
I. Rejeição da premissa 3: nega‐se que só façamos
algo livremente no caso de estar em
nosso poder agir de outra maneira.
II. Rejeição da premissa 2: nega‐se que a presciência divina implique que nunca está em
nosso poder agir de outra maneira.
III. Rejeição da premissa 1: nega‐se que Deus tenha presciência dos acontecimentos do futuro.
IV. Aceitação da conclusão 4: nega‐se que tenhamos liberdade.
As soluções III e IV são «radicais», pois redundam na negação quer da
doutrina da presciência divina quer da liberdade humana. Nenhum teísta propõe
seriamente a solução IV, pelo que podemos pô‐la de parte tranquilamente. A solução III, contudo, como veremos, é a
solução preferida por diversos teólogos importantes, incluindo Boécio e S.
Tomás de Aquino. Consideremos, portanto, as primeiras três soluções para este
problema intrigante.
A definição de liberdade a primeira solução rejeita a premissa 3 do
argumento, alegando que exprime uma ideia errada da liberdade humana. Como
vimos, há duas ideias diferentes de liberdade.
Segundo a primeira, agir livremente consiste apenas em fazer aquilo que
se quer ou escolhe fazer; a liberdade não exige o poder de agir de outra
maneira. Quem aceita esta ideia de liberdade humana não vê, e com razão,
qualquer conflito entre ela e a doutrina da predestinação divina. Uma solução
semelhante foi desenvolvida mais plenamente pelo teólogo americano Jonathan
Edwards (1703–1758). A adequação desta solução depende inteiramente de se poder
ou não defender, contra as críticas dos filósofos, a sua ideia acerca daquilo
em que consiste a liberdade humana. 3. Contudo,
tendorejeitado esta ideia de liberdade em favor da segunda ideia — a ideia de
que só fazemos algo livremente se estiver em nosso poder agir de outra maneira
— não insistiremos nesta solução para o problema da presciência divina e da
liberdade humana. Pois dada a segunda ideia de liberdade humana,tem de se
aceitar a verdade da premissa.
3. Poder sobre o passado
A segunda solução principal rejeita a premissa 2, negando assim que a
presciência divina implique que nunca está em nosso poder agir de outra
maneira. Na verdade, esta solução, se for boa, não mostra que 2 é falsa, mas
antes que o raciocínio em que se procurou sustentá‐la não é bom. Que raciocínio é esse? Bom, em termos mais simples: se 2
não é verdadeira, então está em nosso poder determinar o passado — factos
acerca do que Deus sabia antes de termos sequer nascido. Mas, prossegue o
raciocínio, nunca se dá o caso de estar em poder de alguém determinar o
passado; portanto, 2 tem de ser verdadeira. A segunda solução põe em causa a
afirmação de que nunca está em nosso poder determinar o passado, argumentando
que temos de facto o poder de determinar alguns factos acerca do passado,
inclusive factos acerca do que Deus sabia antes de termos sequer nascido. Esta
solução foi sugerida pelo influente filósofo do século XIV, Guilherme de Occam
(1285–1349). A ideia básica em que assenta a segunda solução envolve uma
distinção entre dois tipos de factos acerca do passado: factos que são apenas
acerca do passado e factos que não são apenas acerca do passado. Para ilustrar
esta distinção, consideremos dois factos acerca do passado, factos acerca do
ano de 1941:
f1. Em 1941 o Japão ataca Pearl Harbor.
f2. Em 1941 inicia‐se uma guerra
entre o Japão e os Estados Unidos com a duração de quatro anos.
Relativamente ao século XXI, f1 e f2 são ambas apenas acerca do passado.
Mas suponha‐se que consideramos o ano de
1943. Relativamente a 1943, f1 é um facto que é apenas acerca do passado, mas
f2 não é apenas acerca do passado. É um facto acerca do passado relativamente a
1943, pois f2 é, em parte, um facto acerca de 1941, e 1941 está no passado de
1943. Mas f2, ao contrário de f1, implica um determinado facto acerca
de1944—nomeadamente, f3. Em 1944 o Japão e os Estados Unidos estão em guerra. Como
f2 implica f3, um facto acerca do futuro relativamente a 1943, podemos afirmar
que, relativamente a 1943, f2 é um facto acerca do passado, mas não é apenas um
facto acerca do passado. Temos então três factos, f1, f2 e f3, acerca
dos quais podemos afirmar, relativamente ao século XXI, que são factos apenas
acerca do passado. Relativamente a 1943, contudo, só f1 é apenas acerca do
passado; f2 é acerca do passado mas não apenas acerca do passado, e f3 não é
sequer acerca do passado.
Tendo ilustrado a distinção entre um facto que, relativamente a um
determinado momento t, é apenas acerca do passado e um facto que relativamente
a t não é apenas acerca do passado, estamos agora em condições de ver a sua
importância. Pense‐se em1943 e nos
grupos de pessoas que estavam então no poder, tanto no Japão como nos Estados
Unidos. Não estava em poder de qualquer destes grupos fazer coisa alguma a respeito
de f1. Ambos os grupos podiam lamentar as acções que tornaram f1 um facto acerca
do passado. Mas é abundantemente claro que, entre todas as coisas que em 1943
estes grupos podiam fazer, nenhuma delas é tal que, caso a tivessem feito, f1
não seria um facto acerca do passado. Não faz qualquer sentido olhar para trás,
para 1943, e afirmar que se ao menos um destes grupos tivesse feito na altura
isto e aquilo, então f1 nunca seria um facto acerca do passado. Não faz sentido
precisamente porque, relativamente a 1943, f1 é um facto apenas acerca do
passado. Nada que alguém pudesse ter feito em 1943 teria alterado o facto de
que em 1941 o Japão atacou Pearl Harbor.
Mas e quanto a f2, o facto de em 1941 se ter iniciado uma guerra entre o
Japão e os Estados Unidos com a duração de quatro anos, o que podemos dizer? Sabemos
que em 1943 nem um nem outro grupo fez coisa alguma que alterasse este facto
acerca de 1941.
A questão, contudo, é se houve ou não coisas que não se fez em 1943,
coisas que, não obstante, estavam em poder de um ou outro grupo, ou ambos, de
tal maneira que, se as fizessem, um determinado facto acerca de 1941, f2, não
seria sequer um facto. Talvez não tenha havido. Talvez o ímpeto da guerra fosse
tal que nenhum dos grupos tinha o poder de lhe pôr fim em 1943.
Maioritariamente, suponho, pensamos de outra maneira. Pensamos que
provavelmente houve determinadas acções que não se realizou mas que um ou outro
grupo podia terrealizado em 1943, acções que, se tivessem sido realizadas,
teriam posto fim à guerra em 1943. Se aquilo que pensamos ser verdade o é de facto,
então estava em poder de um ou mais grupos, em 1943, determinar um facto acerca
do passado; estava em seu poder em 1943 fazer algo tal que, se o tivessem
feito, um determinado facto acerca de 1941, f2, não seria um facto acerca de
1941. A razão fundamental por que, em 1943, f2 pode ter estado em poder destes
grupos, ao passo que f1 seguramente não estava, é que, ao contrário de f1, f2
não é apenas acerca do passado, no que diz respeito a 1943, porquanto f2
implica um determinado facto acerca de 1944— que em 1944, o Japão e os Estados
Unidos estão em guerra (f3).
O raciocínio anterior sugere que a nossa convicção de que não podemos
alterar o passado é seguramente verdadeira, no que diz respeito a factos que
são apenas acerca do passado. Os factos que são acerca do passado, mas não
apenas acerca do passado, contudo, podem não estar além do nosso poder de
afectar. E Occam viu que os factos acerca da presciência divina em que se
baseia a negação da liberdade humana são factos acerca do passado, mas não apenas
acerca do passado. Considere‐se novamente o facto
de que, antes de o leitor nascer, Deus sabia que iria estar na aula às 14:30
esta Terça‐feira. Queremos acreditar que
às 14:00 estava em seu poder agir de outra maneira, baldando‐se à aula das 14:30. Atribuir‐lhe este poder implica que estava em seu poder às 14:00 afectar um facto
acerca do passado, o facto de que antes de o leitor ter nascido Deus sabia que
o leitor ia estar na aula às 14:30. Este facto acerca do passado, contudo, não
é,relativamente às 14:00, um facto apenas acerca do passado. Pois implica
relativamente às 14:00 um facto acerca do futuro — nomeadamente, que às 14:30 o
leitor está na aula. E a solução que estamos explorando defende que estava em
seu poder alterar esse facto acerca do passado, se é que às 14:00 estava em seu
poder, como acreditamos que estava, ter ido ao cinema em vez de ir à aula. Pois
o leitor tinha o poder de fazer algo tal que, caso o fizesse, algo que até
então era um facto acerca de um momento anterior ao seu nascimento não seria
sequer um facto; ao invés, seria um facto que, antes de o leitor nascer, Deus
sabia que o leitor não estaria na aula às 14:30.
Como é óbvio, haverá ainda muitos factos acerca da presciência divina
que não estão em poder do leitor: todos aqueles factos, por exemplo, que
relativamente ao momento em que se encontra, são factos apenas acerca do
passado. O próprio facto que poderia estar em seu poder às 14:00 — o facto de
que, antes de ter nascido, Deus sabia que o leitor estaria na aula às 14:30 —
é, às 14:45, enquanto está sentado na aula a lamentar não ter ido ao cinema, um
facto que não pode então (às 14:45) estar em seu poder, porque às 14:45 é um
facto apenas acerca do passado. E há muitos factos envolvidos na presciência
divina, que não são apenas acerca do passado, mas que, não obstante, o leitor
não pode alterar, pois os factos que pressupõem acerca do futuro ultrapassam o seu
poder. Por exemplo, Deus sabia antes de o leitor nascer que o Sol nasceria
amanhã. Este facto acerca do passado não é apenas acerca do passado porque
implica um facto acerca de amanhã, que o Sol nascerá. Não obstante, é um facto
que o leitor não pode alterar.
Estivemos a considerar a segunda solução para o problema da presciência
divina e da liberdade humana. Como vimos, esta solução consiste em negar o
raciocínio que sustenta a segunda premissa do argumento pelo qual se
desenvolveu o problema, a premissa que afirma que se Deus sabe antes de
nascermos tudo o que faremos, nunca está em nosso poder agir de outra maneira. Segundo
o raciocínio que sustenta esta premissa, dada a presciência divina, só está em
nosso poder agir de outra maneira se está em nosso poder alterar algum facto
acerca do passado, um facto acerca do que Deus sabia antes de termos nascido. A
solução que estivemos a considerar aceita este ponto do raciocínio apresentado
a favor da premissa 2, mas nega o seguinte: que o passado nunca está em nosso
poder. Daqui se argumenta que alguns factos acerca do passado não são apenas
acerca do passado, que alguns desses factos podem estar em nosso poder, e que
os factos acerca da presciência divina usados no raciocínio que sustenta a
premissa 2 são disso exemplos. Assim, de acordo com a segunda solução
principal, não temos boas razões para aceitar a segunda premissa do argumento
que parte da presciência divina para concluir a negação da liberdade humana. E
sem tais razões, tem ainda de se mostrar uma dificuldade real em defender
simultaneamente que Deus sabe antes de nascermos tudo o que faremos e que por
vezes temos o poder de agir de outra maneira.
A negação da presciência
A terceira e última solução que consideraremos rejeita a premissa 1 do
argumento, negando
consequentemente que Deus tenha presciência dos acontecimentos do futuro. Mais
atrás chamei «radical» a esta solução porquanto, ao contrário das primeiras duas, não procura reconciliar a
presciência divina com a liberdade humana, parecendo antes negar que haja sequer presciência. Todavia, como
veremos, esta foi a solução preferida
por muitos teólogos importantes na tradição religiosa ocidental. A terceira solução tem duas formas
diferentes. A primeira é que as afirmações acerca de determinados
acontecimentos do futuro, que poderão ocorrer ou não, não são verdadeiras nem falsas; tornam‐se verdadeiras (ou falsas) quando os acontecimentos a que se referem ocorrem efectivamente
(ou não ocorrem). Por exemplo, agora, a afirmação «Você assistirá a uma aula
numa determinada hora, num determinado dia da
próxima semana» não é, na perspectiva em causa, verdadeira nem falsa. Na
próxima semana, naquela hora daquele dia em particular, a afirmação tornar‐se‐á verdadeira se o leitor for à aula e falsa se não for.
Desta perspectiva a respeito das afirmações sobre o futuro, normalmente atribuída a Aristóteles, resulta que
Deus não sabe agora se o leitor vai ou não assistir à aula naquela hora da
próxima semana, que não tem presciência de tais acontecimentos do futuro.
Porquanto só há conhecimento acerca do que é
verdade e, se as afirmações acerca do futuro não são verdadeiras nem falsas,
não podem ser objecto de conhecimento.
A forma mais amplamente aceite da terceira solução assenta na ideia de
que Deus é «eterno» no segundo dos dois sentidos que apresentámos no Capítulo
1. Aí vimos que «ser eterno», no primeiro sentido do termo, é ter duração
infinita em ambas as direcções temporais. No segundo sentido, contudo, «ser
eterno» é existir fora do tempo e, portanto, independentemente da lei
fundamental do tempo, segundo a qual a existência de tudo o que está no tempo,
mesmo um ser perpétuo, divide‐se em partes
temporais. Como escreveu Boécio, pois tudo o que vive no tempo vive no
presente, procedendo do passado para o futuro, e no tempo nada é constituído de
tal modo que possa abarcar de uma só vez todo o âmbito da sua vida. Não chegou
ainda ao amanhã e já perdeu o ontem; mesmo a vida deste dia é vivida em cada
momento transitório, passageiro.
4. Por contraste às coisas no tempo, concebe‐se que a vida infinita, interminável, de Deus lhe é inteiramente
presente, toda de uma vez. Como tal, Deus tem de estar completamente fora do
tempo. Pois, como acabámos de ver, a vida de tudo o que está no tempo divide‐se em partes temporais, sendo que num dado momento
apenas uma destas partes temporais pode estar presente a esse ser.
A ideia de que Deus é eterno no sentido de estarfora do tempo é
directamente relevante para a doutrina da presciência divina. Porquanto a noção
de presciência sugere naturalmente um ser localizado num dado momento no tempo,
que sabe algo que irá ocorrer noutro momento posterior no tempo. Assim, dizemos
que Deus sabe num momento antes de o leitor nascer o que o leitor faria às
14:30 desta Terça‐feira. Mas se Deus
está fora do tempo, então não podemos afirmar que tem presciência dos
acontecimentos do futuro, se com isso pressupomos que Deus está localizado num
dado momento do tempo e que nesse momento sabe o que irá ocorrer num momento
posterior. Segundo Boécio, Tomás e muitos outros teólogos que defendem a
eternidade de Deus no segundo sentido, nada acontece no tempo que Deus desconheça.
Todos os momentos no tempo estão sempre presentes a Deus no mesmo sentido em
que aquilo que acontece neste preciso momento, no nosso campo de visão, nos
está presente. O conhecimento que Deus tem do que para nós é o passado e o
futuro é exatamente como o conhecimento que podemos ter de algo que nos
acontece no presente. Estando acima do tempo, Deus apreende todo o tempo num
relance, tal como nós, que estamos no tempo, podemos apreender com um relance
algo que acontece no presente. Referindo‐se ao conhecimento que Deus tem do que ocorre no tempo, diz‐nos Boécio:
Abrange o leque infinito do passado e do futuro e contempla todas as
coisas na sua compreensão simples como se ocorressem agora. Assim, se se pensar
na presciência pela qual Deus distingue todas as coisas, considerar‐se‐á, correctamente,
que não se trata de presciência dos acontecimentos do futuro, mas de conhecimento
de um presente imutável. Por esta razão, chama‐se «providência» à presciência divina em vez de «previsão», porque está
acima de todas as coisas inferiores e a todas observa a partir de cima.
5. Segundo Boécio, Deus, estritamente falando, não tem presciência, pois
a sua posição não é a de quem sabe antecipadamente que algo vai acontecer. E no
entanto, Deus sabe tudo o que ocorreu, ocorre e ocorrerá. Mas sabe‐o do mesmo modo que nós sabemos o que ocorre no
presente. Talvez possamos tornar a situação de Deus mais clara se distinguirmos
dois sentidos de presciência: presciência1e presciência 2. Um ser em
presciência1de um acontecimento x, digamos, desde que exista num determinado momento
anterior à ocorrência de x e sabe, nesse momento, que x ocorrerá posteriormente.
Este é o género de presciência que Deus não pode ter, se for eterno no segundo sentido,
pois nesse caso Deus não existe num determinado momento no tempo, estando antes
inteiramente fora do tempo. Um ser tem presciência 2 de um acontecimento x,
digamos, desde que a ocorrência de x esteja presente a esse ser mas de tal maneira
que ocorra depois do momento em que nós (que estamos no tempo) existimos agora.
Sendo Deus eterno no segundo sentido, não pode ter presciência1de acontecimento
algum, mas isto não o impede de ter total presciência 2 de todos os
acontecimentos que, do ponto de vista de quem existe no tempo, estão ainda por
vir.
Podemos agora ver como Boécio e Tomás resolvem o problema da presciência
divina e da liberdade humana. Como vimos, o problema é que afirmar
simultaneamente as duas proposições pressupõe que por vezes temos o poder de
alterar um facto acerca do passado, um facto acerca do que, num determinado
momento antes de nascermos, Deus já sabia. Se defendemos que nunca está em nosso
poder alterar quaisquer factos acerca do passado, parece que temos de negar ou
a presciência divina ou a liberdade humana. Boécio e Tomás chamam a atenção
para que isto só é um problema genuíno no caso de se atribuir presciência1a
Deus. Pois se Deus tem presciência1, haverá factos acerca de um momento no
passado que, se temos liberdade humana, teríamos de poder alterar. Segundo
Boécio e Tomás, não podemos atribuir presciência1a Deus, pois isso pressupõe
que Deus existe no tempo. Deus tem presciência 2 de tudo o que está ainda por
vir. Mas a presciência 2 não pressupõe a existência de um facto acerca de um momento
do passado. Pois Deus não existe no tempo sequer. A presciência2 que Deus tem
de um acontecimento no tempo não difere realmente do conhecimento que o seu professor
teve às 14:30 de Terça‐feira quando viu o
leitor entrar na sala de aula. Ninguém pensa que o conhecimento obtido por ver
o leitor entrar na sala de aula anula o poder que o leitor tinha antes de fazer
outra coisa qualquer. De igual modo, a presciência2 de Deus, dado observar o
tempo a partir de cima e apreender o que no tempo é futuro mas que é presente
do ponto de vista de Deus, não impõe qualquer necessidade sobre aquilo que vê.
Pois não há um facto anterior, que envolva o conhecimento divino e que teria de
estar em seu poder, se o leitor tivesse a liberdade para agir de outra maneira.
Neste capítulo estudámos um dos problemas intemporais do teísmo, o
problema da presciência divina e da liberdade humana, e considerámos
detalhadamente as principais soluções que surgiram ao longo de séculos de
reflexão acerca do problema. Das três soluções que considerámos, só as duas
últimas são defensáveis se, como sugeri, a primeira assentar numa ideia
inadequada da liberdade humana. A última solução, dado basear‐se na ideia de que Deus existe fora do tempo, padecerá
de quaisquer imperfeições associadas a essa ideia. Alguns filósofos pensaram
que a ideia em si é incoerente, e outros argumentaram que embora a ideia possa
ser coerente, qualquer ser que seja eterno no sentido de existirfora do tempo
nunca poderia agir no tempo, e, portanto, não podia criar um mundo ou fazer um
milagre — actividades que em geral se atribui ao Deus teísta. Não é
possível,todavia, abordar estes assuntos aqui.
6. A segunda solução ajusta‐se bem à ideia de
que Deus é eterno no primeiro sentido apresentado no Capítulo 1, eterno no
sentido de ser perpétuo, ter duração infinita em ambas as direcções temporais.
Nesta perspectiva, atribui‐se a presciência a
Deus, mas argumenta‐se que na medida em
que agimos livremente temos o poder de alterar alguns factos acerca do passado.
Se tanto a segunda como a terceira soluções forem boas, então, quer se afirme
que Deus é eterno no primeiro sentido quer se afirme que é eterno no segundo, o
problema da predestinação divina e da liberdade humana deixade serinsolúvel
para o teísmo.
Revisão
1. Explique as duas ideias diferentes de liberdade humana. Qual delas é
mais adequada? Porquê?
2. O que é o problema da presciência divina e da liberdade humana?
3. Explique o raciocínio básico que sustenta a afirmação de que se antes
de nascermos Deus sabe tudo o que faremos, então nunca está em nosso poder agir
de outra maneira.
4. Explique as diversas soluções que se deu ao problema da presciência
divina e da liberdade humana.
5. Como usam Boécio e Tomás a ideia de que Deus é eterno, na solução que
adoptaram?
Estudo complementar
1. Discuta o seguinte argumento:
Se Deus é eterno no sentido de existir fora do tempo, então nunca
poderia agir, porquanto toda a acção ocorre no tempo. Mas se Deus nunca pudesse
agir, nunca poderia criar coisa alguma, perdoarfosse a quem fosse,responder a
qualquer oração ou realizar quaisquer acções que comummente se lhe atribui.
Logo, se concebemos Deus como criador, benevolente, e por aí em diante, não
podemos acreditar, sob pena de inconsistência, que existe fora do tempo.
2. Das diversas soluções para o problema da presciência divina e da
liberdade humana, escolha a que pensa ser a melhor e explique as suas razões
para a considerar melhor do que as outras soluções propostas.
Notas Bibliograficas:
1. John Locke, An Essay Concerning Human Understanding, livro II, Cap.
XXI, par. 10, org. Peter H. Nidditch (Londres: Oxford University Press, 1975),
p. 238. [Ensaio Sobre o Entendimento Humano,trad. Eduardo Abranches de Soveral,
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1999.]
2. Aristóteles, Nicomachean Ethics, VII, 2, 1139b, em The Basic Works of
Aristotle, org. Richard McKeon (Nova Iorque: Random House, 1941).[Ética a
Nicómaco,trad. António C. Caeiro, Lisboa: Quetzal, 2006.]
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