O HUMANISMO ATEU
Por Jorge
Ribeiro[1]
Aquilo que sou e aquilo que eu pretendo
ser até que ponto é o objeto de minha consciência? Estou deveras interessado
pelo meu surgir e pelo meu devir ou apenas me basta o meu aparecer? O que
permanece em mim e de mim além do momento fugidio e arredio que o presente me
impõe? A partir da constatação de uma crise generalizada de costumes e de senso
antropológico e o emergir de novas banalidades, a reflexão sobre o pensamento
moderno e, especialmente, do humanismo ateu, pode nos ajudar não somente a nos
interrogar sobre a indiferença globalizada, mas também sobre a marginalização
da pessoa como sujeito de direitos, deveres e de destino. Partindo do texto de
Henri De Lubac: O drama do humanismo ateu,
buscaremos numa perspectiva cristã revisitar e interpretar esse drama que entra
de maneira violenta e revolucionária na sociedade hodierna. Não é um texto
exauriente e de grandes pretensões, mas quer ser um esboço para possíveis
explorações no campo da filosofia, ou seja, olhando o homem e os reflexos que
são imprimidos no seu rosto com quais realidades nos confrontamos? E por que
esse afã desordenado de quer mais ter e dominar que ser e compartilhar? O que
leva uma pessoa a se distanciar de si mesma em função de certo status e posição
social? Por que a negação de traços fundamentais de sua estrutura em nome de
uma liberação que resulta em prisão?
De Lubac afirma que para o homem,
conhece-te quer dizer conhecer a tua nobreza e a tua dignidade, compreender a
grandeza do teu ser e da tua vocação, daquela vocação que constitui o teu ser.
Saiba ver em ti o teu espírito, feito pelo Absoluto. O conhecer aparece como
reconhecer, o que é sem dúvidas o primeiro passo para uma auto-avaliação e que
exerce o papel de olhar para dentro de si e extrair o que ainda coloca em
reticências a própria estrutura. Outras informações: www.pjribeiro.blogspot.com
Como os antigos
Padres da Igreja, também os grandes doutores medievais tinham por sua vez, sem
distinção de escola, exaltado o homem, expondo o que a Igreja sempre ensinou
referentemente à relação do homem com Deus: em cada homem a magnificência, em
cada um a dignidade.
Mas o homem um
dia não foi mais tocado por isso. Começou a acreditar que jamais tinha estimado
a si mesmo e não poderia ter se desenvolvido livremente se não tivesse tocado
os laços com a Igreja, depois com aquele mesmo Ser transcendente do qual a
tradição cristã o fez depender.
O homem elimina
Deus para reentrar ele mesmo na possessão da grandeza humana que lhe parece
indevidamente retida por um outro. Em Deus ele abate um obstáculo para
conquistar a sua liberdade. O humanismo moderno se constrói sob um rancor e
inicia com uma escolha.
O humanismo não
surgiu entre nós de maneira brusca como um bloco errático num deserto sem
ligação com a paisagem circundante. Recolheu e explorou largamente a herança
duma tradição anterior. Não podemos fazer uma análise, ainda que incompleta, de
suas fontes, isso excederia em muito o objetivo do nosso estudo. Bastará
lembrar os nomes de alguns precursores, cuja influência se mantém viva. Em
Particular Comte, Feuerbach e Nietzsche comunicaram ao humanismo certos traços
de família ainda visíveis.
A idéia de um
Deus transcendente é rejeitada por Comte, com firmeza, mas sem acrimônia, em
nome da ciência positiva. Essa crença tradicional parece-lhe ultrapassada pelas
descobertas modernas relativas à origem do homem e do universo. No entanto, a
negação de Deus entra numa nova fase. Outrora, o ateu encontrava-se com o
crente no mesmo campo de discussão. Punha o problema nos mesmos termos, segundo
os mesmos modos de raciocínio, em nome dos mesmos princípios. Exata atitude
parece a Comte tímida e perigosa, porque o ateu, apesar de sua segurança, se
expõe a regressar atrás. A inquietação e a fé arriscam-se a ressuscitar, mais
dias menos dias, numa inteligência ainda imbuída de preocupações religiosas.
Por isso convém
extirpar as raízes da crença, sufocando o sentido do absoluto e excluindo
qualquer pesquisa metafísica. Desde então o problema teológico torna-se difícil
e sem interesse: morre de inanição. Nunca mais se levantará (A. Comte, Discurso sobre o Espírito Positivo,
51-53). O reino de Deus fica irrevogavelmente exausto.
Era apenas uma
regência provisória durante a infância da humanidade. Agora, que o homem
atingiu a idade adulta e que entrou na era da ciência positiva e da emancipação
intelectual, afasta a questão religiosa como um falso problema. Descobre mesmo
a s ilusões que outrora a suscitaram: a ignorância e a ingenuidade. Mas,
sabendo que não se destrói uma coisa senão substituindo-a, Comte substitui a
idéia de Deus pelo culto da humanidade, promovida à categoria de divindade nova
(De Lubac, O drama do humanismo ateu,
169-171). A sociologia substitui a religião.
Muitos desses
temas passaram para o laicismo doutrinal. Não se trata de uma atitude prática
de neutralidade entre diferentes confissões, mas antes de uma metafísica que
rejeita qualquer dogma sobrenatural, qualquer moral transcendente, qualquer
socorro vindo do alto. A hipótese de uma ordem divina seria um obstáculo à
expansão do homem. Um dos mais argutos teóricos do laicismo, Guy-Grand, define
essa tendência como uma concepção puramente humana da vida, oposta á uma visão
religiosa: “entre os partidários da razão, como entre os partidários das
religiões, as discussões nem sempre são claras; mas, quaisquer que sejam os
cambiantes, a linha divisória é nítida: entre o natural e o sobrenatural, entre
Deus e o homem” (Guy-Grand, Sur la
Paix religieuse, 11; 179). De resto, o mesmo autor chama de laicismo à
tendência para colocar o fundamento de toda a moral na razão, à margem de Deus:
“e é por isso que a palavra humanismo, entendida no seu pleno significado, é
aquela que melhor lhe convém” (Cfr. Charmot, L’humanisme et humain, 82-84).
O mesmo se
poderia dizer do sistema de L. Feuerbach. Ele centra os seus olhares sempre
sobre o homem, ao nível da matéria e nos limites da vida presente. Subsume
progressivamente a transcendência na imanência e reduz a religião a um rigoroso
naturalismo. Substitui primeiro o Deus do protestantismo pela razão divinizada,
à maneira do panteísmo. Depois identifica Deus com a humanidade, foco único de inteligência,
de vontade e de amor. É esse o sentido dessa profissão de fé, que lembra a lei
dos três estados de Comte: “Deus foi o meu primeiro pensamento, a razão o
segundo, o homem o terceiro” (Lévy, A
filosofia de Feuerbach, 52-53). Deus é o termo de uma alienação do homem.
Encarna as suas
qualidades, mais do que os traços próprios de cada indivíduo, exprime as
propriedades características da espécie, na sua universalidade espacial e
temporal. Deus infinito, é a razão dotada de um poder absoluto (L.Feuerbach, Essência do cristianismo, p.60).Deus
bom, é o amor espontâneo de cada um por si mesmo (Idem, 86). A religião não
tem, pois, outro objeto que não seja o homem (Idem, 221), nem outra origem que
não seja uma transferência de sua personalidade para uma quimera (Idem, 103): “vampiro
da humanidade que se alimenta da sua substância, da sua carne e do seu sangue”
(Feuerbach, citado por Spenlé, La pensée
allemande de Luther a Nietzsche, 122).
No espírito de
Feuerbach, as negações religiosas derivam de preocupações humanitárias. O que
ele encara é uma libertação da servidão metafísica e espiritual. Porque o
remédio deve se adaptar à doença: é preciso arrancar a máscara aos fantasmas,
despoja-los de seu falso prestígio, trazer para a terra a essência projetada no
céu, restituir ao homem as suas riquezas perdidas. Negar qualquer realidade
estranha ao universo, é afirmar o valor supremo da humanidade (Lévy, A Filosofia de Feuerbach, 47-49). Para
enaltecer o homem Feuerbach renega Deus.
Nietzsche
acalenta contra Deus a mesma paixão. Pretende atingir os extremos limites do
ateísmo e lançar as suas bases definitivas. <>; esta
proclamação, muitas vezes retomada por seus discípulos, domina as obras de seus
últimos anos. Não se trata de um tema entre muitos outros, mas da inspiração
que anima todos os movimentos de um pensamento caótico e ardente (Jaspers, Nietzsche, 246; 430ss; De Lubac, Op.
Cit. 42-46; Thibon, Nietzsche ou le déclin de l’espirit, 34ss).
Aos olhos de
Nietzsche, Deus é apenas uma ilusão do homem que procura uma compensação para a
sua miséria. Pesadelo que leva a uma fuga do mundo e a grandes tarefas humanas.
Eis porque a fórmula: <>, não é o simples enunciado de
um fato verificado, nem o queixume de uma alma enlutada, nem a ironia de uma
inteligência lúcida. É uma resolução tomada. Nietzsche não quer dizer “Deus não
existe”, nem: “não creio em Deus”; mas antes: <>. O ateísmo aqui é uma negação ativa, um partidarismo, um
verdadeiro deicídio.
Essa atitude se
explica pelo temperamento de Nietzsche que, num sistema filosófico, vê antes um
eco do instinto do que uma obra da razão. Não um conjunto de verdades
impessoais, mas a expressão subjetiva de um caráter, memórias ou confidências.
Os juízos que estabelecem a “tábua de valores” não assentam sobre argumentos
racionais. “Vivem-se de certo modo. Um livro é, antes de mais, um ato.
Nietzsche arvora-se em profeta, mais do que um pensador. Não critica os
argumentos de seus adversários. Prefere infligir-lhes o seu desprezo e os seus sarcasmos.
Classifica as suas doutrinas, não como erros, mas incluindo-as na categoria das
doenças ou flagelos naturais (Lichtenberger, La Philosophie de Nietzsche, 4-5).
Nietzsche julga
o assassinato de Deus necessário à expansão do homem. A perfeita solidão assim
criada à sua volta, alarga o círculo de seu horizonte e liberta-o de quaisquer
limites. A sua vontade identifica-se com a justiça; o seu contato santifica
todas as coisas; a sua bondade e a sua força alastram até ao infinito (Assim falou Zaratustra, 118; A gaia
ciência, 180).
A morte de Deus
conduz logicamente à inversão dos valores tradicionais. Verdade e dever
subsistiam graças a ele; falsas divindades que arrasta consigo para o túmulo.
Resta a divisa da sociedade misteriosa dos “assassinos”, encontrada pelos
cruzados no próximo Oriente: “Nada é verdadeiro. Tudo é permitido”. O sábio
cria livremente os princípios de onde decorrem os juízos intelectuais e morais.
Viver é inventar valores. Eclipse da razão, falência da moral, são estas as
conseqüências que implica a morte de Deus.
Perante estas
ruínas trágicas, o homem moderno fica estupefato e inquieto. Numa página muitas
vezes citadas da Gaia Ciência, Nietzsche imagina um louco fazendo
irrupção numa praça pública com uma lanterna na mão, em pleno dia, e gritando
sem parar: “Ando à procura de Deus!Ando à procura de Deus! A multidão
primeiro surpreendida, não tarda a começar a sorrir. Mas o louco continua: “Para
onde foi Deus? Vou dizer-vos: Matamo-lo, vós e eu!Todos nós somos os assassinos
dele! Mas como o pudemos fazer! Como pudemos esvaziar o mar? Quem nos deu a
esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós, quando desprendemos esta
terra da cadeia do seu sol? Para onde a conduzem agora os seus movimentos?...
Não andaremos errantes através de um nada infinito? O vazio não nos seguirá com
o seu hálito? Não estará mais frio? Não vedes avançar incessantemente a noite,
cada vez mais cerrada?”(A Gaia, 161)”.
O assassinato de
Deus convulsiona a vida do homem forçado a tomar o seu lugar. Silenciosos os
testemunhos desta cena encaram estupefatos o louco. E este, arremessando
bruscamente a lanterna que se estilhaça, conclui com despeito: “Chego
demasiado cedo, a minha hora ainda não soou. Este acontecimento enorme está a
caminho, avança mas ainda não chegou aos ouvidos dos homens... Este ato está
ainda mais longe deles do que o mais remoto dos astros, e contudo foram eles
que o realizaram!”.
Que coisa se
tornou o homem desse humanismo ateu? Um ser que a si mesmo se ousa chamar ainda
de ser. Uma coisa que não tem interioridade, uma célula totalmente imersa numa
massa em devir. Homem social e histórico, do qual não permanece mais nada que
uma abstração fora das relações sociais e da situação em que se define tal. No
homem não tem mais nem interioridade nem estabilidade e nem profundidade.
Mas sob essa
diversidade se encontra sempre o mesmo caráter fundamental, a mesma essência.
Este homem é literalmente dissolvido. Quer seja em nome do mito ou em nome da
dialética, perdendo a verdade, perde a si mesmo. Na realidade não tem mais
homem, pois não tem mais nada que transcenda o homem. O humanismo ateu não
poderia concluir-se senão em um falimento.
O
homem é si mesmo somente porque a sua face é iluminada por um raio divino. Se o
fogo desaparece, subitamente o seu reflexo some. Deus não é para o homem
somente uma norma que se lhe impõe e que, guiando-lhe, eleva-o: Ele é o
Absoluto que o funda, é a calamidade que o empurra, o além que o incita, é o
Eterno que lhe oferece o único clima em que pode respirar, é de certo modo
aquela terceira dimensão que o homem encontra a sua profundidade (Thibon, A escada de Jacob).
Sem Deus a
verdade mesma é um ídolo, e a justiça também é um ídolo. Ídolos demasiados
puros e pálidos com relação aos grandes mitos coletivos que despertam os
instintos mais potentes. O laicismo da sociedade moderna constituiu o álveo dos
grandes sistemas revolucionários que hoje precipitam como uma avalanche (De
Lubac, O drama do humanismo ateu).
Para as pessoas
que se colocam em caminho, com a tranquilidade de viver a beleza do caminho e a
densidade que o dinamismo das experiências oferecem, a possibilidade de se
deixar tocar pelo Absoluto e de mergulhar no seu infinito horizonte não é um
fuga ou alienação e muito menos uma busca desenfreada de proteção ou de divinização,
mas a consciência da própria descontinuidade e da própria condição de peregrino
de um mundo aberto e que faz tocar o véu da eternidade. A sede e a fome de
realização que corrói cada pessoa humana e que muitas vezes para tentar uma
certa satisfação empurra essa mesma pessoa a longínquos abismos e profundas
feridas, essa realidade é a mesma natureza humana que vai além de si mesma e
que busca desvendar o seu mistério.
BIBLIOGRAFIA
DE LUBAC, H., Il drama dell’umanesimo ateo, Jaca book, Milano 1996.
FEUERBACH, L., A essência do cristianismo, Vozes, Petrópolis: 1994.
NIETZSCHE, F., Gaia ciência, Companhia das Letras, São Paulo: 2001.
RIBEIRO, J., Natureza e Espirito em Schelling, CEAS, Roma: 1995.
SARTRE, J-P., O ser e o nada, Vozes, Petrópolis: 2004.
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