Da Amizade
Jorge Ribeiro
jorgeribeiroribeiro@gmail.com
“A natureza
parece muito interessada em implantar em nós a necessidade das relações de
amizade” (M. Montaigne, Da amizade,
Essais I, 28), com essa afirmação de Montaigne busco escolher o melhor
lugar e a melhor maneira de expressar esse meu sentimento e essa minha
necessidade de amar, de ser amado e de construir conhecimentos que possam ir
além da superficialidade e da formalidade; no seu ensaio Montaigne expressa a
sua lealdade e o seu respeito por La Boétie, o seu amigo e modelo de vida
virtuosa, do qual ele nunca mais se separou a partir do momento que se
conheceram e nem a morte prematura desse fez o nosso filósofo esquecer ou
diminuir o seu afeto e aproximação com o amigo.
Montaigne
afirma ainda que é “a correspondência dos gostos que engendra as verdadeiras e
perfeitas amizades” (Idem), por isso,
em uma relação formal: pais e filhos, trabalho e outras agregações de parentela
ou ofício não se verifique esse saborear a própria ligação ou afeição porque não necessariamente exista uma
correspondência das vontades e do ideais, mesmo porque essa seja uma
necessidade de condição e não uma escolha da amizade por si mesma. Amor de
obediência, de respeito e de honra não é o mesmo que amor de amizade, ou seja,
onde haja uma união e uma compenetração dos espíritos que muitas vezes parecer
ser uma única pessoa.
A amizade é
procurada e não simplesmente uma consequência de escolhas e de vínculos, o que
significa que na amizade os envolvidos se conhecem, se respeitam, se entregam e
sobretudo se amam, não por qualquer qualidade, mas “ele era ele e eu sou eu”,
como declara Montaigne; os amigos caminham unidos e um é causa da alegria e do
crescimento existencial do outro, porque na amizade não há apropriação ou
exclusivismos, mas as “vontades intimamente fundidas” contribuem para o
desenvolvimento sadio e proporcional da identidade do amigo. A amizade não é
possessão ou domínio, mas liberalidade de afeto e de vida que mesmo na
exigência da presença do amigo não fecha a porta para os outros.
Quando La
Boétie faleceu, Montaigne se entristeceu e se retirou de todos os prazeres e
desejos vitais, mas depois compreendeu que a amizade não se destruía com a
morte, mas que a ausência física do amigo o fazia descobrir que dando
continuidade ao seu projeto e vivendo em sintonia com a sua perspectiva, a sua
presença era presente e o seu exemplo era o estímulo para que ele não
paralisasse, mas que colocaria em prática o que realmente essa o essencial da
existência, isto é, o movimento. A amizade cheia de convicção e de virtude que
estimulou Montaigne a escrever e a se tornar um dos maiores escritores do
Renascimento, baseava-se na simplicidade e na sinceridade da relação amistosa e
na franqueza de manifestar o seu mundo vivido como expressão de seu pensamento,
mas acima de tudo se uma experiência dinâmica de si mesmo e do mundo que o
circundava.
Lendo as
páginas de Montaigne e não somente o Da
amizade, percebe-se um entrelaçar profundo e espontâneo da reflexão
filosófica com a cotidianidade do senhor de Montaigne, sem sofrer a divisão
operada por muitos estudiosos, entre o mundo vivido, consumado e material e o
mundo pensado, idealizado e aconselhado; certo que ele era muito consciente e
suas páginas revelam, da descontinuidade e da reticência operante do interior
de cada ser humano e por isso mesmo, ele não hesitava mostrar as suas fraquezas
e defeitos para poder superar essa natural ambiguidade da condição humana.
A nomenclatura
realista e altamente simples da escritura de Montaigne não somente revelam o
seu caráter e a sua visão do mundo e da filosofia como projeto e não como
sistema, mas revelam sobretudo que o homem é aquilo que vive e que ama e não o
que se define; assim sendo, amar significa desnudar-se em espirito perante o
outro para poder viver a amizade não como estratégia e sim como condição mesma
de ser e viver. Na amizade o outro não é o obstáculo que se deve superar ou um
acordo para não sofrer as consequências da solidão e do abandono, mas o
encontro de desejos, vidas e objetivos que tem como propósito oferecer e
receber amizade, pois se existe qualquer outro interesse fora da amizade mesma,
a relação se destina a se transformar em um comércio de afinidades e afetos e
depois se arruína e esfria, dado que perde a sua natural espontaneidade.
Ser amigo é
deixar-se guiar pelos sonhos do outro, porque sabe que esse te conduz pela
estrada da felicidade; quando se vive a amizade com abertura e como virtude de
quem encontra a joia de existir, a esperança se torna o motor de cada gesto e a
serenidade o modo de enfrentar e de se aproximar de cada evento e de cada
pessoa. As pessoas que não experimentam a amizade ou confundem essa com
interesses, geralmente são amargas, pessimistas e duplas na convivência e na
construção dos próprios afetos. A escolha da amizade se dá não pelas posses ou
talentos, mas pela vontade de trilhar juntos o mesmo caminho e de propor-se em
jogo na busca incerta mas divina da realização e da satisfação pessoal. Essa
sede infinita de presença e de reconhecimento do próprio eu no eu do outro é o
que distingue uma amizade e que une sempre e de todos os modos aqueles que se
amam.
Olhando a mim
mesmo e a minha descontinuidade, que não significa ser inconcludente ou
sugestionável, mas simplesmente que reajo diversamente a estímulos semelhantes,
não tenho um comportamento retilíneo e standard, mas vivo a atmosfera do
momento, porque não me vejo enquadrado em nenhum rótulo e ainda menos em
atitudes fixas e determinadas, posso ser extrovertido em um momento e altamente
tímido no outro, anjo e demônio, como já se dizia os padres da igreja, justo e
pecador ao mesmo tempo, e não retenho isso um mal, apenas o resultado de uma
natureza que de por si mesma é suspensa entre a satisfação instintiva dos
animais e o desejo profundo de eternidade dos espíritos, para parafrasear
Pascal; sinto-me assim, capaz de gestos grandiosos de doação e desprendimento,
mas também de atitudes mesquinhas e egoístas (segundo a escala de valores
vigente) e não vejo que seja um pecado ou uma abominação, mas apenas vicissitudes
diferentes.
O homem é capaz
de amar, de perdoar, de renunciar, mas também de matar, roubar e de se vingar, e
dependendo de como vive esses traços posso aceita-los como natural, ainda que
não se convenha realizar tudo que seja natural ou não proibido; mas o homem é
capaz de algo que nem as bestas e nem os anjos são capazes, ou seja, de uma
amizade profundo, como desapego total de si e entrelaçamento de vontades, ou
seja, até Deus sou amou com amor de amizade quando se fez homem, antes amava
com coração de Deus, capaz de salvar ou de outros gestos grandes, mas não de
compenetrar na miséria e na grandeza do sentimento humano. Eu quando ao uma
pessoa me perco na minha entrega e por isso mesmo sofro quando a outra pessoa
não entende a amizade como a entendo e a busco.
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